Ceia do Senhor

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009


"Uma exposição do profundo e precioso significado da Ceia do Senhor"


Prefácio do Autor

A ordenação da Ceia do Senhor deve ser considerada pela mente espiritual como uma prova tocante do Seu cuidado e amor bondoso pela Sua Igreja. Desde a sua instituição a ceia tem sido um testemunho contínuo, embora silencioso, de uma verdade que o inimigo tem procurado corromper e pôr de parte por todos os meios ao seu alcance, a saber; que a redenção é um fato consumado para ser usufruído até pelo mais simples crente em Jesus.

Passaram-se dezenove séculos desde que o Senhor Jesus deu "o pão e o cálice" com símbolos do Seu corpo ferido e do Seu sangue derramado por nós: e não obstante a heresia e os cismas, a controvérsia e as desavenças e a guerra de princípios e preconceitos que a página manchada da história eclesiástica registra, esta ordenação tem sido celebrada pelo povo de Deus em todos os tempos.

Com quanto interesse e gratidão deveria o crente contemplar "o pão e o cálice"! Sem uma palavra proferida são-nos apresentadas verdades ao mesmo tempo gloriosas e preciosas: a graça reinando; a redenção efetuada; o pecado tirado; a justiça eterna introduzida; o aguilhão da morte banido; a glória eterna assegurada; a "graça e glória" reveladas como dons de Deus e do Cordeiro e a unidade de "um só corpo" batizado por "um Espírito".

Que festa! Conduz a alma, num abrir e fechar de olhos, através de um período de mais de dezenove séculos e mostra-nos o Próprio Senhor, "na noite em que foi traído", sentado à mesa da ceia e instituindo uma festa que, desde essa noite memorável, até ao raiar da manhã, deveria conduzir o coração crente, ao mesmo tempo, para a cruz e a glória!

Esta festa tem, desde então, e pela própria simplicidade do seu caráter e dada a profunda significação dos seus elementos, condenando a superstição que a deifica e adora, a profanação que a desintegra e a infidelidade que a põe inteiramente de parte; e, além disso, ao mesmo tempo que tem condenado todas as coisas, tem fortalecido e confortado milhões de filhos de Deus. É grato pensarmos nisto e termos em vista, quando nos reunimos, no primeiro dia da semana, em volta da mesa do Senhor, que apóstolos, mártires e santos têm-se reunido nesta festa e encontrado nela, segundo a sua medida de compreensão, ânimo e benção. Escolas de teologia foram levantadas, floresceram e acabaram; doutores e pais acumularam tomos de divindade; heresias venenosas têm escurecido a atmosfera e rasgado a igreja professa de uma ponta à outra; a superstição e o fanatismo têm mostrado as suas teorias extravagantes; os crentes professos espalharam-se em inumeráveis seitas; mas a Ceia do Senhor tem continuado por entre as trevas e a confusão a contar a sua história simples e compreensível: "... todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor , até que venha". (1 Co 11.26).

Pão partido; vinho despejado; quão simples! A fé pode ver nestes elementos o que eles significam, e não precisa das circunstâncias fortuitas que a religião introduziu com o fim de acrescentar dignidade, solenidade e temor aquilo cujo valor é devido ao fato de ser um memorial de um fato eterno.

Que Deus nos dê uma maior compreensão do significado da Ceia do Senhor e uma mais profunda experiência da bem-aventurança de partirmos o pão que "é a comunhão do corpo de Cristo".

A CEIA DO SENHOR

"Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o Novo testamento no meu sangue: fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha" (1 Co 11:23-26).

Desejo fazer alguns comentários sobre o assunto da ceia do Senhor, com o fim de despertar no espírito daqueles que amam o nome e as instituições de Cristo um interesse mais fervoroso por esta importante e vivificante ordenação.

Devemos dar graças ao Senhor por ter instituído um memorial da Sua paixão em prova do Seu cuidado das nossas necessidades e por ter posto uma mesa à qual todos os Seus remidos pudessem comparecer, sem qualquer outra condição além da indispensável união com Ele e obediência à Sua vontade.

O bendito Senhor conhecia bem a inclinação dos nossos corações para nos esquivarmos D’Ele e uns dos outros. Impedir esta inclinação foi um, pelo menos, dos fins que teve em vista na instituição da Ceia.

O Seu desejo era que o Seu povo se reunisse em volta da Sua bendita Pessoa. Por isso, pôs-lhe uma mesa; onde em vista do Seu corpo ferido e do Seu sangue derramado, pudessem lembrar o seu grande amor por eles, e donde pudessem também antever o futuro e ver a glória da qual a cruz é o fundamento eterno. Ali, mais do que em qualquer parte, eles aprenderiam a esquecer as suas divergências e a amarem-se uns aos outros – poderiam ver à sua volta aqueles que o AMOR DE DEUS havia convidado para a festa e que O SANGUE DE CRISTO tornara idôneos de aí estar.

A natureza da ordenação da Ceia do Senhor

A natureza da ordenação da Ceia do Senhor é um ponto de grande importância. Se não compreendermos a natureza desta ordenação perder-nos-emos nos nossos pensamentos acerca dela. A Ceia é, pois, simplesmente uma festa de ação de graças por graça recebida. O próprio Senhor, quando da sua instituição, marcou o seu caráter dando graças: "... tomou o pão, e tendo dado graças...". Louvor, e não oração deve ser a linguagem daqueles que se sentam à mesa do Senhor.

Verdade seja que temos muitas coisas por que orar – muitas coisas a confessar – muito que lamentar, mas a mesa do Senhor não é lugar para lamentações! A sua linguagem é: "Dai bebida forte aos que perecem e o vinho aos amargosos de espírito; para que bebam e se esqueçam da sua pobreza e do seu trabalho não se lembrem mais" (Pv 31: 6, 7).

O nosso cálice é um "cálice de benção" – cálice de ação de graças – o símbolo divinamente ordenado do sangue precioso que efetuou a nossa redenção. "O pão que partimos, não é porventura a comunhão do corpo de Cristo?" (1 Co 10:16). Como poderíamos nós parti-lo com corações tristes ou semblantes carregados? Poderiam os membros de uma família sentar-se à mesa da ceia, depois do labores do dia, com gemidos e semblantes descaídos? Não, de certo. A ceia era a refeição mais importante da família – a única que reunia todos os seus membros. Rostos que talvez não fossem vistos durante o dia eram certo estarem presentes à ceia, e sem dúvida que se sentiam felizes por estar ali.

O mesmo deve ser com a Ceia do Senhor: os crentes devem reunir-se, e quando reunidos devem sentir-se intimamente felizes no amor que os reúne. Verdade seja que cada coração pode ter a sua própria história – dores íntimas, provações, faltas e tentações desconhecidas de todos os demais; mas estas coisas não formam o alvo a ser contemplado à ceia. Expô-las seria desonrar o Senhor da festa e fazer do cálice de benção um cálice de dor.

O Senhor convidou-nos para a festa e ordenou-nos que, apesar de todas as nossas deficiências, puséssemos a plenitude do Seu amor e a eficácia do Seu sangue entre as nossas almas e tudo mais; e quando o olhar da fé está ocupado com Cristo não há lugar para nada mais.

Se o meu pecado for o assunto dos meus pensamentos e ocupar a minha visão, devo forçosamente sentir-me infeliz, porque estarei desviando os olhos do alvo que Deus me manda contemplar. Estarei a lembrar-me da minha miséria e pobreza – as próprias coisas que Deus me manda esquecer. Deste modo é perdido o verdadeiro caráter da ordenação e, em vez de ser uma festa de gozo e alegria, torna-se uma ocasião de melancolia e de depressão espiritual; e a sua preparação e os pensamentos a seu respeito são mais próprios do monte Sinai (onde Israel trocou o concerto da graça de Deus pelo concerto humano das obras.) do que a festa de uma família feliz.

Se alguma vez pôde prevalecer o sentimento de tristeza na celebração da Ceia, foi sem dúvida, quando da sua instituição, pois que, como teremos ocasião de ver, havia tudo que podia, possivelmente, produzir profunda tristeza e desolação. Todavia, o Senhor Jesus pôde dar graças – o gozo que inundava o Seu coração era profundo demais para ser perturbado pelas circunstâncias. Ele sentiu gozo até mesmo nas pisaduras e nos ferimentos do Seu corpo e no derramamento do Seu sangue – gozo que está muito além do alcance do pensamento ou do sentimento humano. E se Ele pôde alegrar-Se em espírito e dar graças no partir do pão, que devia ser para todas as gerações futuras dos fiéis o memorial do Seu corpo ferido, não devemos nós regozijarmo-nos com isso? Nós que gozamos os resultados benditos de toda a Sua obra e paixão? Certamente que sim.

Podemos ouvir o nosso Pai celestial dizer: "é justo alegrarmo-nos e folgarmos"; e negaremos nós esta conveniência fazendo da mesa, onde o Pai e o pródigo se sentam à volta do bezerro cevado, uma cena de dor e triste receio? Deus não permita tal: não devemos trazer tristeza à presença divina; na verdade, não podemos, porque na Sua presença "há abundância de alegrias" (Sl 16:11); e quando nos sentimos infelizes não estamos, certamente, na presença de Deus, mas, sim, na presença dos nossos pecados e das nossas dores, ou de qualquer coisa que não é de Deus.

Mas, pode perguntar-se, não é preciso fazer preparativos? Devemo-nos sentar à mesa do Senhor com tanta indiferença como se nos sentássemos à mesa de uma ceia vulgar? Não, de certo; precisamos de preparação; mas esta preparação é de Deus e não a nossa própria preparação; é a preparação que convém à presença de Deus, a qual não é, certamente, o resultado de gemidos ou lágrimas de penitência, mas a conseqüência simples da obra do Espírito Santo. Conhecendo isto mediante a fé, sabemos o que é que nos torna perfeitamente aptos para Deus.

Muitos pensam que honram a mesa do Senhor quando se aproximam dela com as suas almas curvadas até ao pó da terra sob o sentimento do peso insuportável dos seus pecados. Tal pensamento só pode resultar do legalismo do coração humano, origem sempre fértil em pensamentos ao mesmo tempo desonrosos para Deus e para a cruz de Cristo, injuriosos para o Espírito Santo e completamente perturbadores da nossa paz. Podemos estar certos que a honra e a pureza da mesa do Senhor são mais propriamente mantidas sempre que o SANGUE DE CRISTO se torna ÚNICO direito de aproximação de que se a dor e a penitência humanas lhe forem apresentadas *(é necessário lembrar que apesar do sangue de Cristo ser o único meio pelo qual o crente entra na presença de Deus, com santa ousadia, nunca é apresentado como elo ou centro da nossa união. Na verdade, é preciso para a alma redimida poder lembrar-se, no secreto da presença divina, que o sangue expiador de Jesus removeu para sempre o fardo do seu pecado. Contudo, o Espírito Santo só nos pode reunir para a Pessoa de Cristo ressuscitado e glorificado; o Qual, tendo derramado o sangue do concerto eterno, subiu ao Céu no poder de uma vida sem fim, à qual está inseparavelmente ligada a justiça divina. Portanto, Cristo vivo é o nosso centro e elo da nossa união. O sangue tendo sido assim oferecido a Deus por nós, reunimo-nos em volta da Cabeça ressuscitada e exaltada no Céus. "Eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a Mim" (Jo 12:32) . Vemos no cálice da Ceia do Senhor o símbolo do sangue derramado; mas não nos reunimos em volta do cálice, nem do sangue; mas sim em redor d’Aquele que o verteu. O sangue do Cordeiro removeu todos os obstáculos á nossa comunhão com Deus; e, como prova desse fato, o Espírito Santo veio para batizar os crentes na unidade do corpo e reuni-los em redor da Cabeça glorificada.

O vinho é o memorial de uma alma derramada pelo pecado; o pão memorial de um corpo ferido pelo pecado. Porém, não nos reunimos ao redor de uma vida dada em sacrifício, nem de um corpo ferido, mas em redor de um Cristo vivo, que não morre mais, e Cujo corpo não ser ferido outra vez nem o sangue ser derramado de novo. Há nisto uma diferença que se torna de muita importância quando encarada em ligação com a disciplina da casa de Deus. Muitos estão prontos a julgar que quando alguém é posto fora ou recusado à comunhão fica-se na dúvida se existe ligação entre a sua alma e Cristo. Um simples momento de consideração deste ponto, à luz das Escrituras, bastará para provar que não há lugar para tal dúvida. Se considerarmos o caso do "iníquo" de 1 Corintios 5, vemos nele um que foi posto fora da comunhão da Igreja na terra, mas que, todavia, era cristão, como vulgarmente se diz. Portanto, não foi afastado por não ser cristão, essa questão nunca foi levantada, nem deve sê-lo seja em que circunstância for. Como podemos nós dizer se alguém está eternamente ligado a Cristo ou não? Porventura temos nós à nossa guarda o Livro da vida do Cordeiro? A disciplina da Igreja de Deus está fundada sobre o que nós podemos ou não saber?O homem de 1 Corintios 5 estava eternamente ligado a Cristo ou não? A Igreja foi incumbida de investigar o caso? Suponhamos mesmo que podíamos ver o nome de alguém inscrito no livro da vida, isso não seria razão para o recebermos na assembléia, na terra, ou o conservarmos nela. A Igreja tem a responsabilidade de se conservar pura na doutrina, pura na prática e nas suas ligações, e tudo com base no fato de ser a Casa de Deus. "Mui fiéis são os Teus testemunhos: a santidade convém à Tua casa, Senhor para sempre" (Sl 93:5). Quando alguém era separado ou "cortado" da congregação de Israel, era por não ser Israelita? De modo nenhum: mas por causa de contaminação moral ou cerimonial que não podia ser permitida na Assembléia de Deus. No cada de Acan (Js 7), não obstante haver seiscentos mil almas que desconheciam o seu pecado, Deus disse: "Israel pecou". Porquê? Porque eram tidos como a Assembléia de Deus, e havia pecado nela, se não fosse julgado, tudo seria destruído).

Onde há asteristico (*): Nota de rodapé do autor

Contudo a questão dos preparativos será tratado á medida que formos desenvolvendo o assunto. Quero, no entanto, frisar outro principio ligado com a natureza da Ceia do Senhor, a saber, que existe o reconhecimento inteligente da unidade do corpo de Cristo em ligação com ela. "O pão que partimos não é porventura a comunhão do corpo de Cristo? Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão" (1 Co 10: 16, 17).

Havia faltas lamentáveis e séria confusão a este respeito em Corinto. Com efeito, o principio da unidade da Igreja que parece ter sido completamente perdido de vista em Corinto. Por isso, o apóstolo diz: "... Quando vos ajuntais num lugar não é para comer a ceia do Senhor. Porque, comendo, cada um toma antecipadamente a sua própria ceia" (1 Co 11:20, 21). Havia separação e não unidade; era uma questão individual e não corpórea - a expressão "a sua própria ceia" é posta em contraste com "a ceia do Senhor".

Só pode ser a Ceia do Senhor se o corpo for plenamente reconhecido; onde o corpo não é reconhecido trata-se de sectarismo – o próprio Senhor é excluído.

Se a mesa for posta sobre qualquer principio mais limitado do que aquele que abrange todo o corpo de Cristo, não é a mesa do Senhor, e não tem direitos alguns sobre os corações dos fiéis. Por outro lado, onde quer que a mesa for posta sobre o principio divino de incluir todos os membros do corpo simplesmente como tais, todo aquele que recusar comparecer é culpado de cisma, e isto é também segundo os princípios de 1 Coríntios 11: 19: " E até importa que haja entre vós heresias, para que os que são sinceros se manifestem entre vós".

Quando o principio da Igreja é desprezado por uma parte do corpo, é forçoso que haja heresias, para que os que são sinceros possam manifestar-se; e, nessas circunstâncias, tornar-se o dever de cada membro examinar-se a si próprio, e assim comer a ceia.

Os que são "sinceros" são postos em contrates com os heréticos, ou aqueles que faziam a sua própria vontade *(no original deste capitulo, a palavra traduzida por "sinceros" (versículo 19) vem da mesma raiz da frase traduzida por "examinar-se a si mesmo" (versículo 28). Vemos assim que o homem que se examina a si mesmo toma o seu lugar entre os que são sinceros e é precisamente o contrário daqueles que estavam entre os heréticos. Ora o significado da palavra herético não é meramente aquele que professa falsas doutrinas, se bem que se possa ser herético fazendo-o, mas uma pessoa que persiste em fazer a sua própria vontade. O apóstolo sabia que devia haver heresias em Corinto, visto que havia seitas; os que faziam a sua própria vontade procediam contra a vontade de Deus, e deste modo produziam divisões, porque a vontade de Deus referia-se a todo o corpo. Os que procediam hereticamente desprezavam a Igreja de Deus).

Mas, pode perguntar-se se as numerosas denominações existentes atualmente na Igreja professa não acabam com a idéia de jamais se conseguir a união do todo o corpo e se nessas condições não será melhor para cada denominação ter a sua própria mesa.

Se há algum valor nesta interrogação é apenas o de provar que o povo de Deus já não pode atuar segundo os princípios estabelecidos por Deus, mas que é deixado na miserável alternativa de proceder de acordo com a conveniência humana. Porém, graças a Deus que não é este o caso. A verdade de Deus permanece para sempre, e o que o Espírito Santo ensina em 1 Corintios, capitulo 11, é ainda uma obrigação para membro da Igreja de Deus.

Havia divisões e heresias na Igreja de Corinto; precisamente como há divisões e heresias na Igreja professa. Mas o apóstolo não lhes disse que levantassem mesas separadas, nem mandou que deixassem de partir o pão. Não, ele apenas lhes faz sentir os princípios ligados com a Igreja de Deus, e recomenda aos que são sinceros quanto à Igreja, ou Corpo de Cristo, que comam. A expressão "assim coma"; isto é, em verdadeiro reconhecimento da unidade da Igreja de Deus *(talvez seja conveniente acrescentarmos aqui uma ou duas palavras para orientação de algum crente sincero que possa encontrar-se em circunstâncias que o obriguem a decidir-se no meio da pretensão de mesas diferentes, aparentemente, postas sobre o mesmo principio. Encorajar alguém a tomar uma decisão correta é, no meu pensar, um serviço valioso. Suponhamos, portanto, que eu me encontrava numa localidade onde duas ou mais mesas haviam sido postas: que deveria fazer? Creio que deveria indagar a origem dessas diferentes mesas, a fim de descobrir como se tornou necessário ter mais do que uma mesa. Se, por exemplo, um grupo de crentes, que se reúne num mesmo local, tem consentido e retido entre eles princípios errôneos prejudiciais à Pessoa do Filho de Deus ou de ruína para a unidade da Igreja de Deus na terra; se, digo, tais princípios são permitidos e mantidos na assembléia, ou se as pessoas que os professam e ensinam forem recebidas e reconhecidas pela assembléia, em tais circunstâncias deploráveis e humilhantes, a mesa deixa de ser a mesa do Senhor. Porquê? Porque não posso tomar o meu lugar a essa mesa sem me identificar com princípios claramente anticristãos. Dá-se o mesmo caso, claro, se o caso for de conduta imoral sem ter sido julgado pela assembléia. E portanto, se a mesa deixa de ser do Senhor, não tem mais direitos sobre o cristão, que deseja manter-se a si próprio puro, de que qualquer outra mesa sectária. Ora, se um grupo de cristão se encontrasse nas circunstâncias acima descritas, deveriam ser convidados a manter a UNIDADE DA IGREJA NA PUREZA DA VERDADE DE DEUS. Estes são realmente os pontos importantes: unidade e pureza. Não somente temos de manter a graça da mesa do Senhor, como também a sua santidade. A verdade não pode ser sacrificada para manter a união, nem a verdadeira unidade jamais será prejudicada pela defesa estrita da verdade. As alianças humanas podem falhar, porém a Igreja de Deus nunca poderá ser atingida pela defesa da verdade, desde que a verdade seja mantida em amor. Não deve imaginar-se que a unidade do corpo de Cristo seja prejudicada quando uma comunidade baseada sobre princípios errôneos ou apoiando-se em doutrina ou práticas errôneas é destruída, desligada. Se a verdade de Deus for posta em dúvida por qualquer comunidade, e para ser membro dessa comunidade devo identificar-me com alguma doutrina errônea ou prática corrompida, então não pode ser cisma o fato de eu me separar de tal comunidade: pelo contrário, tenho o dever de me separar. A questão é arrumada por um só versículo da Escritura, a saber: "...recebei-vos uns aos outros como também Cristo nos recebeu" (Rm 15:7). Aqui temos a unidade da Igreja. Mas deve ser para "glória de Deus", e nisto temos a pureza da verdade. Espero que estes comentários sirvam de auxilio a qualquer crente que estiver perplexo perante os argumentos opostos de várias mesas. A questão pode ser simplesmente resolvida quando se tem uma mente simples e a consciência está inteiramente sujeita a Palavra de Deus. Quando a Igreja é desprezada o Espírito deve sentir-Se entristecido e desonrado, e o fim será, inevitavelmente, esterilidade espiritual e formalismo; e embora os homens substituam o poder espiritual pelo intelectual e os dons do Espírito Santo pelos talentos humanos, o fim será "como a tamargueira no deserto" (Jr 17:6).

O verdadeiro modo de fazer progresso na vida espiritual é viver para a Igreja e não para nós mesmos. O homem que vive para a Igreja está de completo acordo com a mente do Espírito Santo, e deve, necessariamente, crescer. Pelo contrário, o homem que vive para si próprio, tendo os seus pensamentos e a sua energia concentrados na sua pessoa, torna-se, rapidamente, formal e abertamente mundano e será embaraçado. Sim, mundano no sentido exato da palavra, porque o mundo e a Igreja encontram-se em oposição direta; nem mesmo existe aspecto algum do mundo em que esta oposição se manifeste tão claramente como no seu aspecto religioso. Aquilo que é vulgarmente chamado o mundo religioso, quando visto à luz da presença de Deus, mostra-se mais hostil aos verdadeiros interesses da Igreja de Deus do que coisa alguma mais.

Mas, antes de passar a outro aspecto do assunto, desejo frisar mais um principio ligado com a Ceia do Senhor, e para o qual quero chamar especialmente a atenção do leitor, a saber: a celebração da Ceia do Senhor deveria ser a expressão da união de TODOS os crentes e não apenas da união de um determinado número reunido sobre determinados princípios que os distinguem dos outros.

Se houver qualquer fundamento de comunhão a não ser o da fé no sacrifício de Cristo e uma conduta consistente com essa fé, a mesa deixa de ser do Senhor para se tornar na mesa de uma seita e não tem direitos alguns sobre os corações dos fiéis.

Além disso, se, assentando-me à mesa, tenho que reconhecer qualquer coisa, quer seja um princípio, quer seja uma prática, que não seja ordenada na Escritura Sagrada como meio de comunhão, nesse caso a mesa deixa, também, de ser do Senhor e torna-se na mesa de uma seita. Não é uma questão de saber se ali estão cristãos ou não; na verdade seria difícil encontrar uma mesa entre as chamadas igrejas reformadas da qual não participassem alguns cristãos. O apóstolo não disse, "Importa que haja entre vós heresias para que os que são cristãos se manifestem entre vós". Não, mas "para que os que são sinceros se manifestem". Tão-pouco disse, "Examine-se, pois, o homem se é cristão, e assim coma". Não, mas "examine-se, pois, o homem a si mesmo". Quer dizer, certifique-se que é um dos que não somente são retos em suas consciências quanto à sua participação da ceia, mas que reconhecem também a unidade do corpo de Cristo.

Quando os homens estabelecem princípios de comunhão propriamente seus lançam a base da heresia; e seguem-se também cismas.

Pelo contrário, onde a mesa é posta de maneira e segundo princípios que um cristão pode, como tal, tomar o seu lugar, torna-se cisma não comparecer; porque com a nossa presença e andando de acordo com a posição que ali tomamos e a profissão que fazemos, tanto quanto está em nós, promovemos a unidade da Igreja de Deus – o grande objetivo com que o Espírito Santo foi enviado do céu à terra.

O Senhor Jesus, tendo ressuscitado de entre os mortos e tomado o Seu lugar à destra de Deus, enviou o Espírito Santo ao mundo com o propósito de formar um corpo. Note-se que foi para formar um corpo – e não muitos corpos. O Senhor não tem interesse por muitos corpos; apesar de ter compaixão de muitos membros desses corpos, porque, sendo membros de seitas ou divisões, são, todavia, membros do único corpo, "pois que todos nós fomos batizados em um Espírito formando um corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos, quer livres, e todos temos bebido de um Espírito" (I Co 12:13).

Espero que não haja mal entendido quanto a este ponto. O Espírito Santo não pode habitar nas divisões da Igreja professa; porque Ele Mesmo, por intermédio de Paulo, disse delas: "nisto não vos louvo" (I Co 11:17). Ele é entristecido por elas – e gostaria de impedi-las –; batiza todos os crentes na unidade de um corpo, de maneira que não pode admitido por qualquer pessoa inteligente que o Espírito Santo possa habitar nas divisões que são uma tristeza para Si.

Todavia, devemos fazer distinção entre o Espírito habitar na Igreja e nos crentes, individualmente. Habita no corpo de Cristo, que é a Igreja (veja-se I Co 3:17, Ef 2: 22); e também no corpo do crente, como lemos, "...o nosso corpo é o templo do Espírito Santo que habita em vós, proveniente de Deus (I Co. 6. 19). O único corpo ou comunidade, portanto, no qual o Espírito Santo pode habitar é toda a Igreja de Deus , e a única pessoa em quem pode habitar o crente.

Como vimos já, a mesa do Senhor, em qualquer localidade, deveria ser a expressão da unidade de toda a Igreja, e onde quer que assim não for não é a mesa do Senhor.

A ceia do Senhor é um ato mediante o qual não só anunciamos a morte do Senhor até que venha, como um ato mediante o qual damos a expressão a uma verdade fundamental, que nunca é demais frisar, na época atual, isto é, que todos os crentes são "um só pão e um só corpo". É um erro vulgar julgar esta ordenação simplesmente como um meio pelo qual é transmitida graça à alma do comungante e não como um ato relacionado com todo o corpo; e relacionado, também, com a Cabeça da Igreja. Que é um meio pelo qual é transmitida graça à alma do comungante não pode haver dúvida, porque há benção em cada ato de obediência. Mas que a benção individual é apenas uma pequena parte, verifica-se pela leitura cuidadosa de I Coríntios, capítulo 11.

A morte do Senhor e a Sua vinda são apresentadas com a proeminência perante as nossas almas na Ceia do Senhor, e onde quer um ou outro destes princípios for excluído deve haver alguma coisa que não está bem.

Se houver alguma coisa que impeça a manifestação completa da morte do Senhor ou a exposição da unidade do corpo ou a compreensão clara da vinda do Senhor, então deve haver alguma coisa que está inteiramente errada no princípio sobre o qual a mesa é posta, e bastará um simples olhar da mente submissa à Palavra de Deus e ao Espírito de Cristo para poder detectar o mal.

Que o leitor não deixe, agora, de examinar, no espírito de oração, a mesa a que habitualmente toma o seu lugar, para ver se ela tem o significado tríplice de I Coríntios 11, e se não tiver deve abandoná-la, em nome do Senhor e por amor da Igreja.

Há heresias e cismas devido a heresias na igreja professa, mas "examine-se o homem a si mesmo, e assim coma" a Ceia do Senhor; e se, de uma vez para sempre, alguém perguntar qual é o significado do termo "sinceros", pode responder-se que é, em primeiro lugar, ser fiel ao Senhor no ato de partir o pão; e, em segundo lugar, libertar-nos de toda aparência de cisma e tomar a nossa posição firme e decididamente sobre o princípio que abrange todos os membros do rebanho de Cristo. Não só devemos ter o cuidado de andar em pureza de coração e vida perante o Senhor, mas também de ver que a mesa de que participamos não tem nada em ligação com ela que possa apresentar um impedimento à unidade da Igreja. Não se trata simplesmente de uma questão pessoal.

Não há nada que prove cabalmente o declínio da Cristandade, nestes dias, ou a grande tristeza do Espírito Santo, como o egoísmo miserável que mancha os pensamentos dos cristãos professos. Tudo gira à volta da mera questão do ego – é o meu perdão, a minha segurança, a minha paz, as minhas idéias, e os meus pensamentos, e não a glória de Cristo ou a unidade da Sua amada Igreja.

Daí a necessidade de apropriarmos ao nosso estado as palavras do profeta Ageu: "Assim diz o Senhor dos exércitos: Aplicai os vossos corações aos vossos caminhos. Subi ao monte e trazei madeira e EDIFICAI A CASA, e dela me agradarei; e EU SEREI GLORIFICADO. Olhaste para muito, mas eis que alcançastes pouco; e esse pouco, quando o trouxestes para casa, eu lhe assoprei. Por que causa? Disse o Senhor dos Exércitos; por causa da minha casa, que está deserta, e cada um de vós corre à sua própria casa" (Ageu 1:7 a 9). Eis aqui a origem do mal. O ego encontra-se em contraste com a casa de Deus, e se a personalidade for o nosso alvo, não é de admirar que haja falta de gozo, de energia e de poder espiritual. Para possuirmos estas coisas temos de estar em comunhão com os pensamentos do Espírito. Ele pensa no corpo de Cristo, e se nós estivermos pensando em nós próprios, estamos tacitamente em desacordo com Ele; as conseqüências são intuitivas.

As circunstâncias em que foi instituída a Ceia do Senhor

O Senhor Jesus ia entrar em luta terrível com todos os poderes das trevas; ia enfrentar toda a hostilidade implacável do homem e esgotar até ao fim o cálice da ira de Deus contra o pecado. Tinha diante de Si uma manhã terrível, a mais terrível que jamais surpreendeu qualquer anjo ou ente humano; todavia, a despeito de tudo, lemos que "na noite em que foi traído tomou o pão". Que amor desinteressado!

"A noite em que foi traído"! Noite de grande dor; noite de agonia e de suor de sangue – a noite em que foi traído por um, negado por outro e abandonado por todos os discípulos. Nessa mesma noite o coração amantíssimo de Jesus pensou na Sua Igreja; foi nessa noite que Ele instituiu a ordenação da Ceia: determinou que o pão fosse símbolo do Seu corpo ferido e o vinho o emblema do Seu sangue derramado; e é o que são para nós, todas as vezes que deles participamos, "...todas as vezes que comerdes este pão, e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor até que venha" (I Co. 11. 26).

Podemos dizer que tudo isto dá a importância especial e santa solenidade à Ceia do Senhor e ajuda-nos, além disso, a compreender as conseqüências de comermos e bebermos dela indignamente *("é vulgar empregar-se o termo ‘indignamente", nesta passagem, a pessoas que celebram a Ceia, ao passo que essa palavra se refere à maneira de celebrá-la. O apóstolo nunca pensou pôr em dúvida o cristianismo dos coríntios; pelo contrário, no prefácio da sua epístola, trata-os como "à Igreja de Deus, e que está em Corinto... santificados em Cristo Jesus, chamados – ou por chamada santos". Como poderia ele ter usado esta linguagem no primeiro capitulo, e, no capitulo onze, pôr em dúvida a dignidade desses mesmos santos para poderem estar à mesa do Senhor? Era impossível! Considerava-os como santos e exortou-os a celebrarem a Ceia do Senhor, nessa qualidade, de uma maneira digna. A questão de se encontrarem entre eles cristãos que não fossem verdadeiros nunca foi levantada. De modo que é de todo impossível que a palavra "indignamente" possa ser aplicada a pessoas. A sua aplicação diz respeito unicamente à maneira de celebrar a ceia. As pessoas eram dignas, mas a maneira como o faziam não o era! E foram convidadas na sua qualidade de santos, a julgarem-se a si mesmos quanto ao seu modo de proceder, de contrário o Senhor poderia julgá-los nas suas pessoas, como era já o caso de alguns. Em resumo: foram convidados como verdadeiros cristãos a julgarem-se a si mesmos. Se tivessem dúvidas em fazê-lo, eram incapazes de julgar o que quer que fosse. Um pai nunca pensaria convidar o filho a decidir se era filho ou não; mas espera que preste atenção à maneira como se conduz de contrário, se não o fizer, poderá ter que fazer por meio de castigo aquilo que ele devia ter feito por disciplina própria. É por ser seu filho que o pai não consente que ele se assente à sua mesa com o fato sujo e maneiras impróprias").

A linguagem desta ordenação será sempre a mesma para o espírito esclarecido. O pão e o vinho são elementos de profundo significado: o trigo moído e a uva esmagada combinam-se para dar forças e alegria ao coração; e não sã apenas significativos em si como são também os próprios emblemas que o bendito Senhor ordenou na noite anterior à Sua crucificação.

De modo que a fé pode ver o Senhor Jesus presidindo á Sua mesa – não pode vê-lo tomar o pão e o vinho e ouvi-lo dizer do pão: "Tomai, comei, isto é o meu corpo". E do cálice: "bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue do Novo Testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados". (Mt 26:26-28).

Numa palavra: esta ordenação reconduz a alma a essa noite – mostra-nos toda a realidade da cruz e a paixão do Cordeiro de Deus, em que as nossas almas podem descansar e regozijar-se; lembrar-nos, da forma mais tocante, o amor desinteressado e o verdadeiro afeto d’Aquele que, quando o calvário projetava a sua sombra no Seu caminho, e o cálice da justiça de Deus contra o pecado, do qual ia ser a vítima de expiação, estava sendo cheio para Si, podia contudo ocupar-se de nós e instituir uma festa que havia de ser ao mesmo tempo os membros do Seu corpo.

E não devemos nós concluir que o Espírito Santo fez uso da expressão "a noite em que foi traído" com o propósito de remediar os males que se haviam levantado na igreja de Corinto? Não havia uma repreensão severa feita ao egoísmo daqueles que tomavam "a sua própria ceia" na referência que o Espírito fez à noite em que o Senhor da festa foi traído? Sem dúvida.

Poderá o egoísmo prevalecer à vista da cruz? Poderão os pensamentos acerca dos nossos próprios interesses ou das nossas conveniências ser permitido na presença d’Aquele que Se sacrificou por nós? Certamente não. Poderíamos nós desprezar propositada e desapiedadamente a Igreja de Deus? Poderíamos nós ofender ou excluirmos membros amados do rebanho de Cristo, enquanto olhássemos para essa cruz, onde o Pastor do rebanho e Cabeça do Corpo foi crucificado? *(o leitor há de notar que o texto não toca no assunto da disciplina escritural. Pode haver muitos membros do rebanho de Cristo que não possam ser recebidos na assembléia, por estarem, possivelmente, contaminados por doutrinas falsas ou práticas errôneas. Porém, embora não os possamos receber, não levantamos, de modo nenhum, a questão de estarem inscritos no Livro da vida do Cordeiro. Este assunto não é da competência nem prerrogativa da Igreja de Deus. "O Senhor conhece os que são seus, e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniqüidade" - 2 Tm 2:19).

Ah, não! Deixai que os crentes permaneçam perto da cruz – que se lembrem dessa noite – e tenham em mente o copo ferido e o sangue derramado do Senhor Jesus Cristo, e o fim da heresia, dos cismas e do egoísmo estará perto.

Se ao menos nos lembrássemos que o Próprio Senhor é Quem preside à Sua mesa, para dar pão e o vinho; se pudéssemos ouvi-Lo dizer, "tomai isto e dividi-o entre vós", poderíamos facilmente encontrar todos os nossos irmãos no único terreno de comunhão que Deus pode reconhecer. Em suma, a pessoa de Cristo é o centro de união, dado por Deus. "Eu, disse o Senhor, quando for levantado da terra atrairei todos a mim" (Jo 12:32).

Todo o crente pode ouvir o seu bendito Senhor falando desde a cruz e dizer dos seus conservos, "eis aí os teus irmãos"; e na realidade, se nós pudéssemos ouvir estas palavras claramente procederíamos, de qualquer modo, como o discípulo amado fez com a mãe de Jesus – os nossos corações e as portas das nossas casas estariam sempre abertos a todos os que assim foram entregues aos nossos cuidados. A Palavra de Deus diz: "... recebei-vos uns aos outros, como também Cristo nos recebeu" (Rm 15:7).

Existe outro ponto digno de atenção ligado cm as circunstâncias em que foi instituída a Ceia do Senhor, a saber: a sua ligação com a Páscoa judaica. "Chegou, porém, o dia dos asmos, em que importava sacrificar a Páscoa. E mandou a Pedro e a João, dizendo: Ide, preparai-nos a Páscoa, para que a comamos. E, chegada a hora, pôs-se à mesa, e com Ele os doze apóstolos, e disse-lhes: desejei muito comer convosco esta páscoa, antes que padeça; porque vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no reino de Deus. E tomando o cálice (o cálice da Páscoa), e havendo dado graças, disse: "tomai-o e reparti-o entre vós; porque vos digo que já não beberei do fruto da vide, até que venha o reino de Deus" (Lc 22:7-18).

A Páscoa era como sabemos, a grande festa de Israel, que foi celebrada pela primeira vez na noite inolvidável da sua libertação da escravidão do Egito.

Quanto à sua ligação com a Ceia do Senhor consiste em ser o símbolo notável daquilo que a ceia é o memorial. A Páscoa prefigurava a cruz; a ceia rememora a cruz.

Porém Israel já não estava em condições morais para celebrar a Páscoa segundo os pensamentos de Deus acerca dela, e o Senhor Jesus, naquela ocasião, separou os Seus apóstolos de todo o elemento judaico para uma nova ordem de coisas. Não devia ser mais um cordeiro sacrificado, mas pão partido e vinho bebido em recordação de um sacrifício oferecido UMA vez, e cuja eficácia havia de ser eterna.

Os que ainda se ocupam com os ritos judaicos podem procurar, de uma maneira ou de outra, as repetições periódicas de um sacrifício ou de alguma coisa que os aproxime mais de Deus. *(Na instituição da Ceia do Senhor, conforme a descrição no Novo Testamento, vemos o pão partido e o vinho despejado: símbolos de um corpo ferido e do sangue derramado. O vinho não está no pão, porque o sangue não está no corpo, porque se assim fosse não haveria "remissão". Em resumo: a Ceia do Senhor é o memorial distinto de um sacrifício eternamente consumado; e ninguém pode participar dele com inteligência e poder senão aqueles que conhecem a plena remissão dos pecados. Não é que nós, de modo algum, façamos do desconhecimento do perdão um termo de comunhão, porque muitos filhos de Deus, devido a ensino errôneo e outras causas, não conhecem a perfeita remissão dos pecados, e se fossem excluídos com base nesse fato, seria fazer do conhecimento um termo de comunhão, em vez de vida e obediência. Contudo, se eu não souber, por experiência, que a redenção é um fato consumado, verei muito pouco significado nos símbolos do pão e o vinho; e, além disso, corro, então, grande perigo de lhe dar uma espécie de eficácia ao memorial que pertence somente à grande realidade que simboliza).

Alguns pensam que na Ceia do Senhor a alma faz ou renova um concerto com Deus, desconhecendo que se tivéssemos que fazer um pacto com Deus seriamos inevitavelmente arruinados: visto que os únicos resultados possíveis de um pacto entre Deus e os homens são a quebra de uma das partes contratantes (o homem) e o conseqüente juízo.

Graças a Deus que não existe nada que se pareça com um pacto entre Deus e nós.

O pão e o vinho, na ceia, falam uma verdade profunda e maravilhosa: falam do corpo ferido e do sangue derramado do Cordeiro de Deus. É aqui que a alma pode descansar com perfeito agrado; por conseguinte, é O NOVO TESTAMENTO NO SANGUE DE CRISTO, e não um pacto entre Deus e o homem. O concerto do homem tinha falhado estrondosamente, e o Senhor Jesus teve que deixar passar por Si o cálice do fruto da vide (símbolo do gozo na terra). O mundo não teve gozo para Si – Israel tornara-se uma haste de uma videira brava. Por conseguinte, Ele teve que dizer: "... Não beberei mais do fruto da vide até àquele dia em que o beber de novo no reino de Deus" (Mc 14:25). Uma época longa e dolorosa tinha que se seguir para o povo de Israel antes que o seu Rei pudesse achar algum gozo na sua condição moral. Porém durante esta época a "Igreja de Deus" devia fazer a festa dos asmos com todo o seu significado e poder moral, pondo de lado "o fermento da malícia" (1Co 5:8) como resultado da comunhão com Aquele cujo sangue purifica de todo o pecado.

Porém, o fato de a Ceia do Senhor ter sido instituída logo a seguir à celebração da Páscoa ensina-nos um principio precioso da verdade, a saber, os destinos da Igreja e de Israel estão inseparavelmente ligados com a cruz do Senhor Jesus Cristo. É verdade que a Igreja tem um lugar mais elevado, pois está perfeitamente identificada com a Cabeça ressuscitada e glorificada no céu; todavia, tudo se baseia na cruz. Sim, foi na cruz que o puro gérmen de trigo foi moído e o sumo do fruto da videira espremido pela mão de Deus, para dar forças e alegria aos corações do Seu povo celestial e terrestre, para todo o sempre.

O Príncipe da Vida tomou das mãos do Senhor o cálice da ira – cálice de horror – e bebeu-o até às fezes, a fim de poder colocar nas mãos do Seu povo o cálice da salvação – cálice do amor inefável de Deus, para que eles pudessem beber dele e esquecer a sua pobreza e da sua miséria não se lembrarem mais.

A Ceia do Senhor quer dizer tudo isto. Quem preside é o próprio Senhor; os remidos devem reunir-se em santa comunhão e amor fraternal para comerem e beberem na Sua presença; e enquanto fazem isto podem volver os olhos para a noite de profunda angústia do seu Senhor e antever o dia da Sua glória – essa "manhã sem nuvens", quando Ele "vier para ser glorificado nos Seus santos, e para se fazer admirável, naquele dia em todos os que crêem" (2Ts 1:10).

As pessoas para quem somente foi instituida a Ceia do Senhor


A Ceia do Senhor foi instituída para a Igreja de Deus – a família dos remidos. Todos os membros da família devem estar presentes na Ceia, porque ninguém pode estar ausente sem incorrer na culpa de desobediência ao mandamento do Cristo e do Seu apóstolo inspirado; e as conseqüências desta desobediência serão o declínio espiritual e um fracasso completo no testemunho de Cristo. Contudo, tais conseqüências só poderão resultar de ausência deliberada à mesa do Senhor. Existem circunstâncias que, em certos casos, podem representar um obstáculo, embora possa haver o mais ardente desejo de se estar presente na celebração da Ceia; o que, aliás, acontecerá sempre com todo o crente espiritual.

Todavia, podemos estabelecer como principio indiscutível da verdade que ninguém que se ausente voluntariamente da mesa do Senhor pode fazer progresso na vida espiritual – "TODA a congregação de Israel" era convidada a celebrar a Páscoa (Ex 12). Nenhum membro da congregação podia ausentar-se impunemente. – "Quando um homem for limpo e não estiver de caminho e deixar de celebrar a Páscoa, tal alma dos seus povos será estirpada: porquanto não ofereceu a oferta ao Senhor a seu tempo: tal alma levará o seu pecado" (Nm 9:13).

Julgo que seria prestar realmente valioso serviço à causa da verdade e promover os interesses da Igreja de Deus se pudéssemos despertar interesse por este assunto tão importante. Há muita diferença e banalidade por toda parte de muitos cristãos, quanto ao assunto da sua freqüência à mesa do Senhor, e onde não existe essa indiferença há a má vontade devido a opiniões imperfeitas de justificação. Tanto um como o outro destes impedimentos, embora tão diferentes no seu caráter, derivam de uma e mesma origem, a saber: o egoísmo.

Todo aquele que é indiferente quanto a este assunto deixará, egoisticamente, que circunstâncias insignificantes interfiram com a sua freqüência à Ceia do Senhor; será impedido por conveniências de família, comodidade pessoal, as condições do tempo, ou, como acontece frequentemente, complicações físicas imaginárias; coisas, aliás, que passam despercebidas ou não tem importância alguma, quando se trata de alcançar qualquer interesse próprio.

Quantas vezes acontece, pessoas que não tem forças espirituais que as levem a deixar as suas casas no dia do Senhor terem, contudo, forçar bastantes para se transportarem, na segunda-feira, ás suas ocupações seculares. Como isto é, infelizmente, verdade! Como é triste pensarmos que os interesses materiais exercem uma influência mais poderosa no coração do crente que a glória de Cristo e os interesses da Igreja; pois é este o modo como devemos encarar a questão da Ceia do Senhor.

Quais seriam os nossos sentimentos, na glória do reino vindouro, se nós pudéssemos lembrar que, no mundo, um mercado, um arraial, ou qualquer outro atrativo mundano tinha ocupado o nosso tempo e as nossas energias, enquanto a reunião do povo do Senhor, em redor da mesa, fora menosprezada?

Se o leitor tem o hábito de se ausentar da assembléia dos crentes, rogo-lhe que pondere o assunto diante do Senhor, antes de fazê-lo outra vez. Pense em todos os efeitos desastrosos da sua ausência. Está fracassado no seu testemunho por Cristo e prejudicando as almas dos seus irmãos; e impede o progresso da sua própria alma em graça e conhecimento! Não julgue que a sua atitude não tem a sua própria influência sobre a Igreja de Deus: neste próprio momento está ajudando ou prejudicando cada membro desse corpo sobre a terra – "Se um membro padece, todos os membros padecem com ele" (1Co 12: 26). Este princípio não deixou de ser verdadeiro, apesar de os crentes professos se terem dividido em tantas seitas diferentes. Antes pelo contrário, é verdade divina que não existe um crente sequer na terra que não esteja sendo um auxiliar ou um estorvo para todo o corpo de Cristo: e se há alguma verdade no princípio já apontado (que a assembléia dos cristãos, e o partir do pão, em qualquer localidade são, ou devem ser, a expressão da unidade de todo o corpo), não pode deixar de reconhecer-se que a sua ausência nessa assembléia ou recusa em mostrar essa união, está causando grave prejuízo a todos os seus irmãos, bem como à sua própria alma.

Quero deixar estes comentários entregues à sua consciência, em nome do Senhor, e esperando que Ele nos torne convincentes *(Eu só posso sentir-me obrigado a comparecer na reunião se os crentes se reunirem segundo os princípios da Assembléia, isto é, os princípios expostos no Novo Testamento. Os crentes podem reunir-se e intitularem-se a Igreja de Deus em qualquer localidade, mas se não mostrarem os característicos e princípios da Igreja de Deus, como nos são apresentados nas Sagradas Escrituras, não podemos reconhecê-los. Se recusarem ou lhes faltar o poder espiritual para julgar o mundanismo, a carnalidade, ou falsas doutrinas, é evidente que não se encontram sobre os princípios da Igreja: é meramente uma comunidade religiosa, e, no seu caráter coletivo, não tenho responsabilidade alguma, perante Deus, de reconhecê-la. Por isso, o crente necessita de muito poder espiritual e obediência à Palavra de Deus para poder conduzir-se através de todos os enredos da igreja professa, nestes dias difíceis).

Mas com freqüência, até mesmo por aqueles que têm fama de ser espirituais e inteligentes, "não tenho proveito espiritual com as reuniões e sinto-me mais feliz em casa, lendo a Bíblia".

Gostava de perguntar a essas pessoas se não devemos ter um motivo mais nobre de nossa maneira de proceder do que a nossa felicidade. Não será a obediência ao mandato bendito do Senhor – dado "na noite em que foi traído" – um motivo muito mais nobre que qualquer coisa que nos diga respeito? Se Ele deseja que o Seu povo se reúna em Seu nome, para o fim expresso de anunciar a Sua morte até que venha, devemos nós recusarmos fazê-lo por nos sentirmos mais felizes em nossas casas? O Senhor diz-nos para estarmos à mesa; nós respondemos: "sentimo-nos mais felizes em casa"; portanto, a nossa felicidade deve ser baseada na desobediência, e, nesse caso, é uma felicidade impura. É muito melhor, se tiver de ser assim, sermos infelizes no caminho da obediência do que sermos felizes no caminho da desobediência.

Todavia, eu creio que a idéia de se ser mais feliz em casa é mera ilusão, e o fim de todos que são iludidos por ela confirmará este parecer.

Tomé podia ter pensado que era indiferente estar presente com os outros discípulos, mas teve que passar sem a presença do Senhor e esperar oito dias, até que os discípulos se reunissem no primeiro dia da semana, e então ali o Senhor revelou-Se à sua alma; e o mesmo acontecerá com aqueles que dizem que se sentem mais felizes em casa do que na assembléia dos crentes: ficarão indubitavelmente para trás em conhecimento e experiência; e poderá dar-se por felizes se não forem incluídos na maldição anunciada pelo profeta: "Ai do pastor inútil que abandona o rebanho; a espada cairá sobre o seu e sobre o seu olho direito; o seu braço completamente se secará e o seu olho direito completamente escurecerá" (Zc 11:17). E também: "Não deixando a nossa congregação, como é costume de alguns, antes admoestando-nos uns aos outros, e, tanto mais, quanto vedes que se vai aproximando aquele dia. Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas uma certa expectação horrível de juízo e ardor de fogo, que há de devorar os adversários" (Hb 10:25-27).

Quanto à objeção que se faz com fundamento na falta de proveito nas assembléias dos cristãos, podemos dizer que a maior improdutividade espiritual será sempre encontrada num espírito contencioso e insatisfeito: e não duvido que se aqueles que se queixam da falta de proveito das reuniões, e tiram daí o argumento para ficarem em suas casas, gastasse mais tempo na presença do Senhor, em oração, pela benção das reuniões, teriam uma experiência muito diferente.

As pessoas que não devem participar da Ceia do Senhor

Quem não pertence à verdadeira Igreja de Deus não deve estar à mesa. A mesma lei que mandava toda a congregação de Israel celebrar a páscoa, mandava que nenhum estranho incircunciso participasse dela. E agora que Cristo a nossa Páscoa foi sacrificado por nós, ninguém pode celebrar a festa, que dever continuar durante toda a dispensação, nem partir o pão ou beber o vinho em verdadeira recordação do Senhor, senão os que conhecem o poder purificador do Seu precioso sangue. Comer e beber sem este conhecimento, é comer e beber indignamente – comer e beber para condenação, como a mulher de quem se fala em Números 5, que bebeu da água amarga para tornar a condenação mais real e terrivelmente solene.

Ora, é nisto que a culpa da Cristandade é particularmente manifestada: tomando a Ceia do Senhor, a igreja professa tem, à semelhança de Judas, metido a mão na mesa com Cristo e traiu-O – tem comido com Ele, e, ao mesmo tempo, levantado o seu calcanhar contra Ele. Qual será o seu fim? Será igual ao de Judas. "E tendo Judas tomado o bocado, saiu logo". E o Espírito Santo acrescenta com terrível solenidade – "E ERA JÁ NOITE" (Jo 13:30).

Que terrível noite! A maior prova do amor de Deus apenas ocasionou a prova mais dura do ódio humano. Assim acontecerá também com a igreja professa coletivamente e todo o falso crente individualmente; e todos aqueles que, embora batizados em nome de Cristo, e assentando-se à mesa de Cristo, têm, todavia, sido Seus traidores, encontrar-se-ão, por fim, lançados nas trevas exteriores – mergulhados numa noite que nunca verá os alvores doa dia – , atirados para um abismo de lamentações intermináveis e inexprimíveis; e embora possam dizer ao Senhor: "Temos comido e bebido na tua presença, e tu nos tens ensinado nas ruas" (Lc 13:26), a Sua resposta, de partir o coração, será, enquanto lhes fechar a porta: "Digo-vos que ao sei de onde vós sois; apartai-vos de mim" (Lc 13:27).

Prezado leitor, pondera estas coisas; e se ainda estás nos teus pecados, não contamines a mesa do Senhor com a tua presença; mas, em vez de ires ali como hipócrita, dirigi-te ao Calvário, como pecador arruinado e culpado, e recebe ali o perdão e a purificação dos teus pecados diretamente d’Aquele que morreu para salvar pecadores como tu.

A ocasião e a maneira de celebrar a Ceia do Senhor

Embora a Ceia do Senhor não fosse instituída no primeiro dia da semana, os capítulos 24 de Lucas e 20 de Atos bastam para demonstrar, a todo aquele que se submete a Palavra de Deus, que é esse o dia, especialmente, em que a ceia deve ser celebrada. O Senhor partiu o pão com os discípulos "no primeiro dia da semana" (Lc 24:30); e "e no primeiro dia da semana" os discípulos reuniram-se para partir o pão (At 20:7). Estas passagens são suficientes para provar que não é uma vez por mês, nem uma vez em três meses, nem tão pouco uma vez em seis meses, que os discípulos devem reunir-se para partir o pão, mas uma vez por semana, pelo menos, e essa no primeiro dia. Não temos qualquer dificuldade em ver que há uma moral apropriada no primeiro dia da semana para a celebração da Ceia do Senhor: é o dia da ressurreição – o dia da Igreja, em contraste com o sétimo dia, que era o dia de Israel; e da mesma forma que na instituição da ceia, o Senhor separou os Seus discípulos inteiramente das coisas Judaicas, recusando-se a beber o fruto da vide, e então instituindo outra ordenação, também, no dia em que essa ordenação deve ser celebrada, nós observamos o mesmo contraste entre as coisas celestiais e as terrestres. É no poder da ressurreição que podemos propriamente anunciar a morte do Senhor. Quando o conflito terminou, Melquisedeque trouxe pão e vinho e abençoou Abraão em nome do Senhor. Assim aconteceu com o Senhor: quando findou a luta e a vitória foi ganha veio da ressurreição com pão e vinho para fortalecer e animar os corações do Seu Povo, e dar-lhes aquela paz que havia adquirido a custa de um tão elevado preço.

Se, portanto, o primeiro dia da semana é o dia indicado nas Escrituras para os discípulos partirem o pão, é claro que o homem não tem poder para alterar o período para uma vez por mês ou uma vez em seis meses. Devemos obedecer tanto ao que a Escritura diz acerca do dia de celebrar a Ceia como com respeito a qualquer outro ponto relacionado com ela. Não há dúvida que, quando as afeições para com o Senhor são verdadeiras e fervorosas, o cristão desejará anunciar a morte do Senhor tão frequentemente quanto lhe for possível. Na verdade, quer-nos parecer, pela leitura do livro de Atos, que os discípulos partiam o pão todas as vezes que se reuniam. Podemos deduzir esta conclusão da frase, "e partindo o pão em casa". Contudo na temos necessidade de depender da mera inferência quanto à questão do primeiro dia da semana ser o dia em que os discípulos se reuniam para partir o pão – isto é-nos dito claramente, e vemos a sua adaptação moral.

Quero dizer agora uma ou duas palavras quanto ao modo de celebrar a Ceia. Deveria ser o fim principal dos cristãos mostrarem que o partir o pão é o motivo principal por que reúnem no primeiro dia da semana. Deveriam mostrar que não é para a pregação ou ensino que se reúnem, se bem que o ensino possa ser um complemento feliz, mas que o partir do pão é o assunto principal que têm em vista. Isto pode ser feito dando-lhe o primeiro lugar nas reuniões. E, não se esqueça, existe uma adaptação moral nesta ordem, bem como no tempo. É a obra de Cristo que anunciamos na Ceia, pelo que deverá ter o primeiro lugar, e, depois de ter sido plenamente anunciada, deveria haver plena oportunidade para a obra do Espírito Santo no ministério. A missão do Espírito é expor e exaltar o nome, a Pessoa e Obra de Cristo; e se Lhe for permitido orientar e governar a reunião dos crentes, o que incontestavelmente fará, dará sempre o primeiro lugar à obra de Cristo.

Não posso terminar estes comentários sem manifestar o sentimento profundo da fraqueza e a superficialidade de tudo quanto tenho dito sobre um assunto tão importante. Sinto, na presença do Senhor, perante O Qual desejo escrever e falar, que tenho falhado tanto em mostrar toda a verdade quanto a este assunto que quase me sinto tentado a impedir que estas páginas sejam publicadas. Não é que eu tenha uma sombra de dúvida quanto à verdade que tenho procurado frisar, não; mas sinto que, para escrever sobre um assunto como é o partir do pão, numa época em que há tanta confusão entre os cristãos professos, há a necessidade de elementos claros, lúcidos e diretos, os quais me acho pouco capaz de apresentar.

Temos apenas uma pequena idéia de como a questão do partir do pão está ligada inteiramente com a posição e testemunho da Igreja na terra; e conhecemos igualmente muito pouco a maneira como este assunto tem sido inteiramente mal compreendido pela igreja professa. O partir do pão deveria ser a afirmação clara do fato que todos os crentes são um só corpo; porém a igreja professa, fragmentando-se em seitas, e levantando uma mesa para cada seita, tem negado, praticamente, esse fato.

De fato, o partir do pão tem sido lançado para segundo plano. A mesa, a que o Senhor devia presidir, é quase perdida de vista, pela maneira como é posta à sombra do púlpito, no qual o homem preside; púlpito, que, enfim, é muitíssimas vezes o instrumento para criar e perpetuar a desunião, é, para muitos, o objeto preponderante, enquanto que a mesa, que, se fosse convenientemente compreendida, perpetuaria o amor e a união, é convertida numa coisa secundária. E até mesmo nos mais louváveis esforços de recuperação de um tão lamentável estado de coisas, que fracasso temos visto!

Que tem a Aliança Evangélica realizado? Pelo menos, tem fomentado, inteiramente, uma necessidade entre os cristãos professos: a qual eles são manifestamente incapazes de satisfazer. Querem união, e são incapazes de consegui-la. Por quê? Porque não querem abdicar de tudo, salvo aquilo que têm como cristãos, para se reunirem, como discípulos, para partir o pão. Digo; como discípulos, e não como Membros de igreja, Independentes ou Batistas. Não é que tais pessoas não possam estar de posse de muita verdade preciosa; refiro-me àqueles de entre eles que amam o Senhor Jesus Cristo: certamente que podem, mas não têm a verdade que os impeça de se reunirem para partir o pão. Como poderia a verdade jamais impedir os crentes de darem expressão à unidade da Igreja? Seria impossível. O espírito sectário naqueles que retêm a verdade pode fazer isto, mas a verdade nunca.

Porém, como se passam as coisas na igreja professa? Crentes de várias comunidades podem reunir-se para oração, leitura das Escrituras e cânticos, durante a semana, mas logo que chega o primeiro dia da semana, não têm a mínima idéia de dar a única prova real e eficaz da sua união que o Espírito pode reconhecer, e que consiste no partir do pão: "... nós sendo muitos, somos um só pão" (1Co 10:16).

O pecado em Corinto era não esperarem uns pelos outros. Isto é evidente pela exortação com que o apóstolo resume toda a questão: "Portanto, meus irmãos, quando vos ajuntais para comer, esperai uns pelos outros" (1Co 11:33). Porque deviam esperar uns pelos outros? Sem dúvida, para poderem manifestar melhor a sua união. Porém, que teria dito o apóstolo se, em vez de se reunirem num mesmo lugar, fossem a lugares diferentes, segundo as suas opiniões diferentes da verdade? Nesse caso, ele poderia ter dito, com maior ênfase: "Não podeis comer a Ceia do Senhor".

Mas – pode perguntar-se – como poderiam todos os crentes de uma cidade como Londres reunir-se num só lugar? A nossa reposta é que se não podiam reunir-se num mesmo lugar, podiam, ao menos, reunir-se segundo o mesmo princípio.

Como se reuniam os crentes de Jerusalém? A resposta é: "eram de um mesmo sentimento". E como era assim, tinham pouca dificuldade quanto ao local de reunião – o "alpendre de Salomão", ou qualquer outro lugar era bom para eles. Manifestavam a sua união, e isto, também, de um modo inequívoco. Nem a questão de vários lugares, nem os vários graus de conhecimento e sucesso, podiam interferir no mínimo com a sua união. "Havia um corpo e um Espírito".

Direi, por fim, que o Senhor honrará, certamente, os que têm fé para crer e confessar a unidade da Igreja na terra; e quanto maiores forem as dificuldades nesse sentido, tanto maior será a honra. Que o Senhor conceda a todo o Seu povo um mesmo propósito e um espírito humilde e honesto.


C.H. Machintosh

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