Antes de entrarmos em pormenores sobre este capítulo, há duas coisas que requerem toda a nossa atenção, a saber: primeiro a posição de Jeová e segundo a ordem por que são apresentados os sacrifícios.
"E chamou o SENHOR a Moisés e falou com ele da tenda da congregação." Tal foi a posição de onde o Senhor fez as comunica-ções narradas neste livro. Havia falado do Monte Sinai, e a Sua posição ali imprimiu um caráter particular à comunicação. Do monte ardente saiu "o fogo da lei" (Dt 33:2). Porém, aqui o Senhor fala "da tenda da congregação". Era uma posição muito diferente.
Vimos este tabernáculo concluído no final do livro precedente. "Levantou também o pátio ao redor do tabernáculo e do altar e pendurou a coberta da porta do pátio. Assim, Moisés acabou a obra. Então a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória do SENHOR encheu o tabernáculo,... porquanto a nuvem do SENHOR estava de dia sobre o tabernáculo, e o fogo estava de noite sobre ele, perante os olhos de toda a casa de Israel, em todas as suas jornadas". (Êx 40:33-38).
Ora, o tabernáculo era o lugar onde Deus habitava em graça. Podia estabelecer ali a Sua habitação, porque estava rodeado de todos os lados por aquilo que representava brilhantemente o fundamento das Suas relações com o povo. Se tivesse vindo ao meio deles na plena manifestação do caráter revelado no Monte Sinai só podia ser para os "consumir num momento", como "povo obstinado" (Êx 33:5). Porém, retirou-se para dentro do véu — figura da carne de Cristo (Hb 10:20) e tomou o Seu lugar sobre o propiciatório, onde o sangue da expiação, e não "o povo obstinado" de Israel, se apresentava à Sua vista e satisfazia as exigências da Sua natureza. O sangue que era levado ao santuário pelo sumo sacerdote era figura do sangue precioso que purifica de todo o pecado; e, embora Israel, segundo a carne, não discernisse nada disto, esse sangue, contudo, justificava o fato de Deus habitar no meio deles; "santificava-os quanto à purificação da carne" (Hb9:13).
Tal é, pois, a posição do Senhor no Livro de Levítico, posição esta que deve ser tida em consideração, se quiser ter um conhecimento exato das revelações que este livro encerra. Nessas revelações encon¬tramos inflexível santidade unida à mais pura graça. Deus é santo, seja qual for o lugar de onde fala. É santo no monte Sinai e santo no propiciatório; porém, no primeiro caso a Sua santidade estava ligada a "um fogo consumidor", enquanto que no segundo estava ligada com paciente graça.
Ora, a união da perfeita santidade com a graça perfeita é o que caracteriza a redenção que há em Cristo Jesus, redenção que é, de diversas maneiras, tipificada no livro de Levítico. É preciso que Deus seja santo, ainda que seja na condenação eterna dos pecadores impenitentes; porém a revelação plena da Sua santidade na salvação dos pecadores faz ressoar no céu um coro de louvor. "Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens" (Lc 2:14). Esta doxologia não podia ter sido entoada em relação com "o fogo da lei". Sem dúvida, havia "glória nas alturas", mas não havia "paz na terra" nem "boa vontade para com os homens", porquanto a lei era a declaração do que os homens deviam ser, antes que Deus pudesse ter prazer neles. Mas quando "o Filho" ocupou o Seu lugar como homem na terra, o céu pôde exprimir todo o Seu prazer n'Aquele cuja Pessoa e obra podiam ligar, da maneira mais perfeita, a glória divina com a bem-aventurança humana.
A Ordem dos Sacrifícios
E agora algumas palavras sobre a ordem dos sacrifícios, nos primeiros capítulos do livro de Levítico. O Senhor começa com o holocausto e termina com a expiação da culpa. Quer dizer, termina onde nós começamos. Esta ordem é notável e muito instrutiva. Quando pela primeira vez a seta da convicção penetra na alma dá-se um profundo exame de consciência quanto aos pecados cometidos. A memória volve a sua vista iluminada para as páginas da vida passada e vê-as manchadas com inumeráveis transgressões contra Deus e contra o homem. Neste momento da história da alma, ela não se ocupa tanto com a raiz de onde brotaram essas transgres¬sões como com o fato palpável que este e aquele ato foram come¬tidos por ela; e, por isso, tem necessidade de saber que Deus proveu um sacrifício por cuja virtude "todas as ofensas" podem ser perdo¬adas livremente. E este sacrifício é-nos apresentado no sacrifício da expiação da culpa.
Mas à medida que a alma progride na vida divina torna-se consciente do fato que esses pecados que cometeu não são mais que rebentos de uma raiz, correntes de uma mesma fonte; e, além disso, que o pecado na sua natureza — ou seja: na carne — é essa fonte, essa raiz. Isto conduz-nos a um exercício íntimo ainda mais profundo, que nada pode tranqüilizar senão um conhecimento mais profun¬do da obra da cruz. Em suma, a cruz deve ser compreendida como o lugar onde Deus Mesmo "condenou o pecado na carne" (Rm 8:3).
O leitor há - de notar que esta passagem não diz "pecados na vida", mas a raiz de onde os pecados provêm, a saber, o "pecado na carne".
E uma verdade de grande importância. Cristo não somente morreu por nossos pecados, "segundo as Escrituras" (1 Co 15:3), como foi feito pecado por nós (1 Co 5:21). Esta é a doutrina do sacrifício da expiação do pecado.
E quando o coração e a consciência encontram descanso medi¬ante o conhecimento da obra de Cristo, que nos podemos alimentar d'Ele como o fundamento da nossa paz e do nosso gozo, na presença de Deus. Não pode haver paz ou gozo antes de sabermos que todas as nossas transgressões foram perdoadas e o nosso pecado julgado. A expiação da culpa e a expiação do pecado têm de ser conhecidas antes que os sacrifícios pacíficos, de manjares ou de ações de graças possam ser convenientemente apreciados. Por isso, a ordem em que está o sacrifício pacífico corresponde à ordem da nossa apreciação espiritual de Cristo.
Nota-se a mesma perfeita ordem em referência à oferta de manjares. Quando a alma é levada a apreciar a doçura da comunhão espiritual com Cristo — a alimentar-se d'Ele em paz e gratidão na presença divina — sente um desejo arrebatador de conhecer melhor os mistérios gloriosos da Sua pessoa; e este desejo é ditosamente satisfeito na oferta de manjares, que é o tipo da perfeita humanidade de Cristo.
Em seguida, no holocausto, somos conduzidos a um ponto para além do qual é impossível ir, e esse ponto é a obra da cruz, realizada sob as vistas de Deus como expressão do afeto inquebrantável do coração de Cristo. Todas estas coisas nos serão apresentadas em belos pormenores, à medida que as examinarmos; aqui considera¬mos apenas a ordem dos sacrifícios, a qual é verdadeiramente maravilhosa, seja qual for o sentido em que caminharmos, seja exteriormente de Deus para nós, ou intimamente de nós até Deus. Em qualquer dos casos começamos e terminamos com a cruz. Se começamos com o holocausto, vemos Cristo na cruz fazendo a vontade de Deus — fazendo expiação, segundo a medida da Sua perfeita rendição a Deus. Se começamos com a expiação da culpa, vemos Cristo na cruz levando os nossos pecados e tirando-os, segundo a perfeição do Seu sacrifício expiatório; enquanto que em cada um e em todos eles vemos a excelência, a beleza e a perfeição da Sua divina e adorável pessoa.
Certamente, tudo isto é suficiente para despertar em nossos corações o mais profundo interesse pelo estudo desses símbolos preciosos que passaremos a analisar pormenorizadamente. E que Deus Espírito Santo, que inspirou o livro de Levítico, dê a sua explicação, em poder vivo, aos nossos corações, para que, quando chegarmos ao fim, possamos ter motivo de sobra para bendizer ao Senhor por tantas e tão admiráveis imagens da pessoa e obra de nosso bendito Senhor e Salvador Jesus Cristo, a quem seja dada glória, agora e para todo o sempre. Amém.
No holocausto, com o qual abre o livro de Levítico, temos uma figura de Cristo, que "se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus" (Hb 9:14). Daí a posição que o Espírito Santo lhe dá. Se o Senhor Jesus Cristo Se manifestou para realizar a obra gloriosa da expiação, o Seu mais desejável e supremo objetivo, na sua consecução estava a glória de Deus.
"Eis aqui venho, para fazer, ó Deus, a tua vontade" (Hb 10:9), era o grande lema em todas as cenas e circunstâncias da Sua vida, e em nenhuma tão completamente como na obra da cruz. Fosse qual fosse a vontade de Deus, Ele veio para a fazer. Bendito seja Deus, nós conhecemos qual é a nossa parte na realização dessa "vontade"; pois por ela "temos sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez" (Hb 10:10).
Contudo, o aspecto primário da obra de Cristo era Deus. Era Seu prazer inefável cumprir a vontade de Deus na terra. Ninguém a tinha feito. Alguns, pela graça, haviam feito o que era reto aos olhos do Senhor; porém ninguém jamais tinha, perfeita e invariavelmen¬te, desde o princípio ao fim, sem hesitação e sem divergência, feito a vontade de Deus. Mas foi isto exatamente que o Senhor Jesus fez. Ele foi "obediente até à morte e morte de cruz" (Fp 2:8): "...mani-festou o firme propósito de ir a Jerusalém" (Lc 9:51). E quando se dirigia do jardim de Getsêmane ao Calvário, o afeto intenso de Seu coração foi expresso nestas palavras: "Não beberei eu o cálice que o Pai me deu?"(Jo 18:11).
Certamente, havia um perfume de cheiro suave nesta absoluta devoção a Deus. Um Homem perfeito na terra, cumprindo a vontade de Deus, até mesmo na morte, era assunto de profundo interesse para o céu. Quem poderia sondar as profundezas desse coração dedicado, que se manifestou aos olhos de Deus, na cruz? Seguramente, ninguém senão Deus; porque nisto, como em tudo mais, certo é que "ninguém conhece o Filho senão o Pai"; e ninguém pode conhecer nada, até certo ponto, a Seu respeito se o Pai o não revelar. A mente humana pode compreender, até certo ponto, qualquer coisa do que se passa "abaixo do sol". A ciência humana pode ser compreendida pelo intelecto humano; mas nenhum homem conhece o Filho de Deus, se o Pai não lho revelar pelo poder do Espírito e por meio da Palavra escrita. O Espírito Santo deleita-se em revelar o Filho — em tomar das coisas de Jesus e revelar-no-las. Estas coisas temo-las, em toda a sua beleza e plenitude, nas Escrituras. Não pode haver novas revelações, pois o Espírito trouxe "todas as coisas" à memória dos apóstolos e conduziu-os a "toda a verdade" (Jo 14:26; 16:13). Não pode haver nada mais além de "toda a verdade"; e, por isso, as pretensões de novas revelações e do descobrimento da verdade — quer dizer, verdade não menciona¬da no cânone sagrado de inspiração — representam apenas os esforços do homem para acrescentar alguma coisa àquilo que Deus designa por "toda a verdade". O Espírito pode, certamente, mostrar e aplicar, com nova e extraordinária energia, a verdade contida na Escritura; porém, isto é claramente uma coisa muito diferente da ímpia presunção que abandona o campo da revelação divina com o propósito de encontrar princípios, idéias e dogmas que tenham autoridade sobre a consciência.
Na narrativa do evangelho Cristo é-nos apresentado nos vários aspectos do Seu caráter, Sua Pessoa e obra. Em todas as épocas o povo de Deus tem achado alegria em recorrer a essas preciosas Escrituras, sedentando-se nas revelações celestiais do objeto do seu amor e confiança—Aquele a quem tudo devem, quer no tempo presente, quer no tocante à eternidade. Contudo, muito poucos comparati¬vamente têm sido induzidos a considerar os ritos e cerimônias da dispensação levítica como cheios das mais minuciosas instruções referentes ao mesmo assunto dominante. Os sacrifícios de Levítico, por exemplo, têm sido considerados freqüentemente como regis¬tros de antigos costumes judaicos, sem nenhum outro significado para nós nem nenhuma luz espiritual para iluminar os nossos entendimentos. Mas tem de admitir-se que as páginas aparente¬mente obscuras de Levítico, assim como as expressões sublimes de Isaías, têm o seu lugar entre "tudo que dantes foi escrito" (Rm 15:4), e são, portanto, "para nosso ensino". Certamente, precisamos de estudar estes registros, assim como também toda a Escritura, com espírito humilde e despretensioso, em reverente dependência do ensino d'Aquele que graciosamente os inspirou para nosso ensino, e com atenção diligente pelo grande objetivo, alvo e analogia geral de todo o corpo da revelação divina; dominando a nossa imaginação, para que se não extravie com entusiasmo profano; mas se assim, mediante a graça, entrarmos no estudo dos símbolos de Levítico, encontraremos um filão do mais rico e precioso minério.
A Vítima
Vamos prosseguir agora com o exame do holocausto, que, como havemos acentuado, representa Cristo oferecendo-se a Si mesmo incontaminado a Deus.
"Se a sua oferta for holocausto de gado, oferecerá macho sem mancha." A glória essencial e dignidade da pessoa de Cristo formam a base do cristianismo. Ele transmite esta dignidade e essa glória a tudo que faz e a cada uma das funções que assume. Nenhuma função podia de algum modo acrescentar glória Aquele que é sobre todos, "Deus bendito eternamente" (Rm9:5) — "Deus manifesta¬do em carne" (1 Tm 3:16) —, o glorioso "Emanuel"—Deus conosco —, o Verbo eterno, o Criador e Mantenedor do universo. Que função poderia acrescentar dignidade a uma tal Pessoal De fato, sabemos que todas as Suas funções estão relacionadas com a Sua humanidade; e assumindo essa humanidade, Ele desceu da glória que tinha com o Pai antes da criação do mundo. Desceu, deste modo, a fim de glorificar Deus perfeitamente no próprio meio de uma cena onde tudo Lhe era hostil. Veio para ser "devorado" por santo e inextinguível zelo (SI 69:9) pela glória de Deus e a realização eficiente dos Seus desígnios eternos.
Cristo Oferecendo-se a Si Mesmo a Deus
O macho sem mancha de um ano era uma figura do Senhor Jesus Cristo oferecendo-se a Si mesmo para o cumprimento perfeito da vontade de Deus. Não deveria haver nada que denotasse fraqueza ou imperfeição. Devia ser "um macho de um ano". Teremos ocasião de ver, quando tivermos ocasião de examinar os outros sacrifícios, que era permitido oferecer, nalguns casos, uma "fêmea"; mas essa era apenas a forma de mostrar a imperfeição inerente à compreen¬são do adorador, e de modo nenhum um defeito da oferenda, por¬quanto esta era "sem mancha" tanto num caso como no outro.
Contudo, o holocausto era um sacrifício da mais elevada ordem, porque representava Cristo oferecendo-se a Si mesmo a Deus — Cristo no holocausto exclusivamente para a vista e o coração de Deus. Eis um ponto que deve ser claramente compreendido. Só Deus podia apreciar devidamente a Pessoa e obra de Cristo. Só Ele podia apreciar plenamente a cruz como a expressão do perfeito afeto de Cristo. A cruz tal qual é simbolizada no holocausto, encerra qualquer coisa que só a mente divina pode compreender. Tinha profundidades tais que nem o mortal nem os anjos podiam sondar. Nela havia uma voz que se dirigia exclusiva e diretamente aos ouvidos do Pai. Entre o Calvário e o trono de Deus houve comunicações que excedem em muito as mais altas capacidades dos entes criados.
"A porta da tenda da congregação a oferecerá, de sua própria vontade, perante o SENHOR." O emprego do vocábulo "vontade", nesta passagem, revela claramente o grande propósito no holocausto. Leva-nos a contemplar a cruz sob um aspecto que não é suficiente¬mente compreendido. Estamos sempre prontos a contemplar a cruz simplesmente como o lugar onde a grande questão do pecado foi tratada e liquidada entre a justiça eterna e a vítima incontaminada — o lugar onde a nossa culpa foi expiada e onde Satanás foi gloriosamente vencido. Louvor universal seja dado eternamente ao amor redentor! A cruz foi tudo isto. E mais do que isto. Foi o lugar onde o amor de Cristo pelo Pai se expressou em linguagem tal que só o Pai podia ouvir e compreender. E sob este último aspecto que a vemos simbolizada no holocausto e é, portanto, por isso que a palavra "vontade" ocorre. Se fosse apenas uma questão de imputação do pecado e de sofrer a ira de Deus por causa do pecado, essa expressão não estaria dentro da ordem moral. O bendito Senhor Jesus não podia, com estrita propriedade, ser apresentado como aquele que desejava ser feito pecado — desejar sofrer a ira de Deus e ser privado da vista do Seu rosto; e, neste fato, por si só, aprendemos da maneira mais evidente, que o holocausto não representa Cristo sobre a cruz levando o pecado, mas, sim, Cristo sobre a cruz cumprin¬do a vontade de Deus. Que Cristo mesmo contemplava a cruz nestes dois aspectos é evidente pelas Suas próprias palavras. Quando contemplou a cruz como o lugar onde foi feito pecado — quando previu os horrores que, sob este ponto de vista, ela encerrava, exclamou: "Pai, se queres, passa de mim este cálice" (Lc 22:42). Fugia daquilo que a Sua obra, por ter de levar sobre Si o pecado, comportava. A Sua mente santa e pura fugia ao pensamento de contato com o pecado; e o Seu terno coração fugia da idéia de perder, por um momento, a luz do semblante de Deus.
O Amor de Cristo pelo Pai
Porém, a cruz tinha outro aspecto. Aparecia à vista de Cristo como uma cena em que Ele podia revelar plenamente os segredos profundos do Seu amor ao Pai — um lugar onde podia, "de Sua própria vontade", tomar o cálice que o Pai lhe havia dado e esgotá-lo até às fezes. É verdade que toda a vida de Cristo emitiu um fragrante odor, que subia sem cessar até ao trono do Pai — Ele fazia sempre as coisas que agradavam ao Pai —, fez sempre a vontade de Deus; mas o holocausto não O representa na Sua vida — precioso além de todo o pensamento como foi cada ato dessa vida —, mas na Sua morte, e não como Aquele que foi feito "maldição por nós", mas como Aquele que apresenta ao coração do Pai um perfume de incomparável fragrância.
Esta verdade envolve a cruz de atrativos particulares para a mente espiritual. Dá aos sofrimentos do nosso bendito Senhor um interesse do caráter mais intenso. O pecador culpado encontra, incontestavelmente, na cruz uma resposta divina aos mais profun-dos e ardentes desejos do coração. O verdadeiro crente encontra na cruz aquilo que cativa todas as afeições do seu coração e deixa aturdido todo o seu ser moral. Os anjos encontram na cruz um tema para contínua admiração. Tudo isto é verdade; mas há alguma coisa na cruz que ultrapassa as mais elevadas concepções dos santos ou dos anjos; isto é, a profunda devoção do coração do Filho para com o Pai e como Este a apreciou. Este é o assunto elevado da cruz, que é manifestado de um modo tão notável no holocausto.
E deixai-me observar que a beleza própria do holocausto deve ser inteiramente sacrificada se admitirmos a idéia de que Cristo carregou com o pecado toda a Sua vida. Deixa de haver então força, valor e significado nas palavras "sua própria vontade". Não poderá haver lugar para ação voluntária no caso de uma pessoa que era compelida, pela própria necessidade da sua posição, a morrer. Se Cristo tivesse carregado com o nosso pecado na Sua vida, então segue-se que a Sua morte seria obrigatória e não um ato voluntário.
De fato, pode afirmar-se com segurança que não há uma oferta sequer entre todas cuja beleza não fosse manchada e a sua integri¬dade sacrificada pela teoria de uma vida carregando com o pecado. Este é especialmente o caso no holocausto, porquanto não é uma questão de carregar com o pecado ou de sofrer a ira de Deus, mas inteiramente de dedicação voluntária, manifestada na morte da cruz. No holocausto reconhecemos uma figura de Deus o Filho, cumprindo, por intermédio de Deus Espírito, a vontade de Deus Pai. Isto fez Ele de "sua própria vontade". "Por isso, o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la" (Jo 10:17). Temos aqui o aspecto da morte de Cristo no holocausto. Por outro lado, o profeta contemplando-O como oferta pelo pecado, diz: "... a sua vida é tirada da terra" (At 8:33 —versão LXX(,) de Isaías 53:8). Outro tanto, Cristo diz, — Ninguém ma tira, mas eu de mim mesmo a dou". Estaria Ele levando o nosso pecado sobre Si quando disse isto? Note-se que Ele diz "ninguém" — homens, anjos, demônios ou qualquer outra criatura. Foi um ato voluntário da Sua própria parte: deu a Sua vida para tornar a tomá-la. "Deleito-me em fazer a tua vontade, ó Deus meu" (SI 40:8). Tal era a linguagem do holocausto divino — de Aquele que achou gozo inexprimível em Se oferecer incontaminado a Deus.
É, pois, da máxima importância aprender com distinção o primário objetivo de Cristo na obra de redenção. Contribui para consolidar a paz do crente. O cumprimento da vontade de Deus, estabelecer os Seus desígnios e parentear a glória de Deus, era o que preocupava esse coração dedicado, que via e avaliava todas as coisas em relação com Deus.
(1) LXX - "Septuaginta" - versão grega do Velho Testamento.
O Senhor Jesus nunca se deteve para averiguar até que ponto qualquer ato ou circunstância O afetaria. "O Aniquilou-se a si mesmo" (Fp 2:7-8). Renunciou a tudo. E, por isso, quando chegou ao fim da Sua carreira, pôde refletir sobre o passado, olhar para trás e, com os olhos levantados ao céu, dizer, "Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste a fazer" (Jo 17:4).
É impossível contemplar a obra de Cristo sob este aspecto sem que o coração se sinta cheio das mais gratas afeições para com a Sua Pessoa. O conhecimento de que o Seu primeiro objetivo na obra da cruz era Deus não diminui em nada o sentimento que temos do Seu amor por nós. Pelo contrário, o Seu amor por nós, e a nossa salvação n'EIe só podiam ser fundamentados no estabelecimento da glória de Deus. Essa glória deve formar a base sólida de todas as coisas. "Porém, tão certamente como eu vivo e como a glória do SENHOR encherá toda a terra" (Nm 14:21). Mas nós sabemos que a glória eterna de Deus e a bem-aventurança eterna da criatura estão inseparavelmente ligadas nos desígnios divinos, de sorte que se a primeira está assegurada, a segunda tem de sê-lo também.
A Identificação do Adorador com o Holocausto
"E porá a sua mão sobre a cabeça do holocausto, para que seja aceito por ele, para a sua expiação." O ato da imposição das mãos exprimia completa identificação. Por este ato significativo o oferente e a oferta tornavam-se um; e esta unidade, no caso do holocausto, assegurava ao oferente que a sua oferta era aceita. A aplicação deste fato a Cristo e ao crente realça uma verdade das mais preciosas, uma das mais largamente desenroladas no Novo Testamento, a saber: a identificação eterna do crente com Cristo e a sua aceitação em Cristo:"... qual ele é, somos nós também neste mundo... No que é verdadeiro estamos."(l jo4:17;5:20).
Nada menos do que isto nos podia aproveitar. O homem que não está em Cristo está nos seus pecados. Não há terreno neutro. Ou havemos de estar em Cristo ou fora d'Ele. Não se pode estar parcialmente em Cristo. Ainda que seja apenas a espessura de um cabelo que se interponha entre vós e Cristo, estais num estado positivo de ira e condenação. Pelo contrário, se estais n'Ele, então sois "qual ele é" perante Deus, e assim considerados na presença da santidade infinita.
Tal é o ensino claro da Palavra de Deus. "Estais perfeitos nele", sois "membros do seu corpo", da Sua carne e dos Seus ossos, "agradáveis" a Deus "no amado", porque "o que se ajunta com o Senhor é um mesmo espírito" (1 Co 6:17; Ef 1:6; 5:20, C12:20). Ora, não é possível que a Cabeça esteja num grau de aceitação e os membros noutro. Não; a Cabeça e os membros são um. Deus considera-os um; e, portanto, são um. Esta verdade é, ao mesmo tempo, o fundamento da mais elevada confiança e da mais profunda humildade. Dá-nos a mais completa segurança "para que no dia do juízo tenhamos confiança" (1 Jo 4:17), visto que não é possível haver qualquer acusação contra Aquele com quem estamos unidos. Dá-nos uma profunda impressão da nossa própria nulidade, visto que a nossa união com Cristo é baseada na morte da velha natureza e na abolição total de todos os seus direitos e pretensões.
Visto que, portanto, a Cabeça e os membros são considerados na mesma posição de infinito favor e aceitação perante Deus, é evidente que todos os membros têm uma mesma aceitação, uma mesma salvação, a mesma vida e uma mesma justiça. Não há graus diferentes na justificação. O recém-nascido em Cristo e o crente de cinqüenta anos estão no mesmo plano de justificação. Um está em Cristo, e o outro também; e assim como estar em Cristo é a única base de vida, também o é de justificação. Não há duas espécies de vida nem duas espécies de justificação. Não há dúvida que existem diversos graus de gozo desta justificação — vários graus no conhecimento da sua plenitude e extensão — vários graus na capacidade de mostrar o seu poder sobre o coração e a vida; e estas coisas são freqüentemente confundidas com a própria justificação, a qual, sendo divina, é, necessariamente, eterna, absoluta, invariável, e não pode ser afetada pela flutuação dos sentimentos ou experiências humanas.
Mas, além disso, não há progresso na justificação. O crente não está mais justificado hoje do que estava ontem; nem estará mais justificado amanhã do que está hoje. Sim, a alma que "está em Cristo Jesus" está tão completamente justificada como se estivesse diante do trono de Deus. O crente é "perfeito em Cristo". É "como" Cristo. Está, sobre a própria autoridade de Cristo, "todo limpo" (Jo 13:10). Que mais poderia esperar ser deste lado da glória ? Pode fazer e fará — se andar em Espírito — progresso no gozo desta gloriosa realidade; mas, quanto à própria justificação, no momento em que, pelo poder do Espírito Santo, creu o evangelho, passou de um estado positivo de injustiça e condenação para um estado positivo de justiça e aceitação. Tudo isto se baseia na perfeição divina da obra de Cristo; precisamente como no caso do holocausto, em que a aceitação do adorador era baseada na aceitação da oferta. Não era uma questão de saber o que ele era, mas simplesmente do que era o sacrifício. "Para que seja aceito por ele, para a sua expiação."
O Sacrifício
"Depois, degolará o bezerro perante o SENHOR; e os filhos de Arão, os sacerdotes, oferecerão o sangue e espargirão o sangue à roda sobre o altar que está diante da porta da tenda da congrega-ção." No estudo da doutrina do holocausto é absolutamente indispensável não esquecer que o ponto principal que ressalta dele não é ir ao encontro da necessidade do pecador, mas apresentar a Deus aquilo que Lhe é infinitamente agradável. Cristo, como é prefigurado no holocausto, não é para a consciência do pecador, mas para o coração de Deus.
Além disso, no holocausto a cruz não é demonstração da abominação do pecado, mas a devoção inabalável de Cristo ao Pai. Nem tampouco é a cena de Deus descarregar a Sua ira sobre Cristo por Ele levar sobre Si o pecado, mas sim a sublime complacência do Pai em Cristo, o sacrifício voluntário e cheio de fragrância. Finalmente a "expiação", como a vemos no holocausto, não é apenas proporcio¬nada às exigências da consciência do homem, mas o desejo intenso do coração de Cristo em fazer a vontade de Deus e estabelecer os propósitos divinos — um desejo que não O impediu de entregar a Sua vida imaculada e preciosa como "oferta voluntária" "de cheiro" suave a Deus.
Nenhum poder da terra ou do inferno, homens ou demônios, pôde demovê-Lo de cumprir este desejo. Quando Pedro, ignorantemente, e com palavras de falsa ternura, procurou dissuadi-lo a não ir ao encontro da vergonha e degradação da cruz, "dizendo: Senhor, tem compaixão de ti; de modo nenhum te acontecerá isso", qual foi a Sua resposta? "Para trás de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que são dos homens" (Mt 16:22-23). De igual modo, noutra ocasião, disse aos Seus discípulos, "Já não falarei muito convosco, porque se aproxima o príncipe deste mundo e nada tem em mim, mas é para que o mundo saiba que eu amo o Pai e que faço como o Pai me mandou. Levantai-vos, vamo-nos daqui" (Jo 14:30-31). Estas e muitas outras passagens correlativas das Escrituras mostram-nos a fase da obra de Cristo no holocausto em que o primeiro pensamen¬to é evidentemente "oferecer-se a Si mesmo imaculado a Deus".
Os Sacerdotes
Em perfeita harmonia com tudo quanto tem sido exposto a respeito deste ponto especial no holocausto está o lugar que ocupam os filhos de Arão e as funções que lhes são assinaladas nele. Eles "espargirão o sangue... porão fogo sobre o altar, pondo em ordem a lenha sobre o fogo", também "porão em ordem os pedaços, a cabeça e o redenho, sobre a lenha que está no fogo em cima do altar". Estas coisas estavam bem em evidência e formam um aspecto notável do holocausto, em contraste com a expiação do pecado, na qual os filhos de Arão não são mencionados. "Os filhos de Aarão" represen¬tam a Igreja, não como "um corpo", mas como casa sacerdotal. Isto compreende-se facilmente. Se Arão era uma figura de Cristo, a casa de Arão era uma figura da casa de Cristo, como lemos na Epístola aos Hebreus, capítulo 3 versículo 6: "Mas Cristo, como Filho, sobre a sua própria casa; a qual casa somos nós". E, "Eis-me aqui a mim e aos filhos que Deus me deu" (Hb 2:13). Agora é privilégio da Igreja, na medida em que é dirigida e ensinada pelo Espírito Santo, fixar os olhos e deleitar-se nesse aspecto de Cristo que nos é apresentado no símbolo com que abre o livro de Levítico. "A nossa comunhão é com o Pai", que, graciosamente, nos convida a ter parte com Ele nos Seus pensamentos acerca de Cristo. É verdade que nunca podemos elevar-nos à altura desses pensamentos; mas podemos ter participa¬ção neles pelo Espírito Santo que habita em nós. Não se trata aqui de uma questão de se ter a consciência tranqüilizada pelo sangue de Cristo, como o que levou sobre Si o pecado, mas de comunhão com Deus na rendição perfeita de Cristo na cruz.
"... e os filhos de Arão, os sacerdotes, oferecerão o sangue e espargirão o sangue à roda sobre o altar que está diante da porta da tenda da congregação." Aqui temos uma figura da Igreja trazendo o memorial de um sacrifício consumado e oferecendo-o no lugar de aproximação individual de Deus. Mas devemos lembrar que é o sangue do holocausto e não o da expiação do pecado. É a Igreja penetrando, no poder do Espírito Santo, no pensamento admirável da comprovada devoção de Cristo a Deus, e não o pecador convicto valendo-se do valor do sangue de quem carregou com o pecado. Desnecessário é dizer que a Igreja é composta de pecadores arrependidos; mas "os filhos de Arão" não representam os pecadores arrependidos, mas, sim, os santos em adoração. É na qualidade de "sacerdotes" que têm de intervir no holocausto. Muitos erram quanto a isto. Imaginam que, pelo fato de se tomar o lugar de adorador — para que se é convidado pela graça de Deus e tornado idôneo para o fazer pelo sangue de Cristo — não tem que se considerar como pecador indigno. Isto é um grande erro. O crente, em si mesmo, nada é absolutamente. Mas em Cristo é um adorador purificado. Não está no santuário como pecador culpado, mas como sacerdote em adoração, vestido com os vestidos de glória e ornamen¬to. Ocupar-me da minha culpa na presença de Deus, não é, pelo que me diz respeito, humildade mas sim incredulidade, pelo que respei¬ta ao sacrifício.
Todavia, é bem evidente que a idéia de levar o pecado — a imputação do pecado—, ou da ira de Deus, não aparece no holocausto. È certo que lemos: "... para que seja aceito por ele, para a sua expiação"; mas é "expiação" não segundo a profunda enorme culpa humana, mas segundo a perfeita rendição de Cristo a Deus e a intensidade do prazer de Deus em Cristo. Isto dá-nos a mais elevada idéia da expiação. Se contemplamos a Cristo como o sacrifício pelo pecado, vemos expiação efetuada segundo as exigências da justiça divina em relação ao pecado. Mas quando vemos a expiação no holocausto, é segundo a medida da boa vontade e capacidade de Cristo para cumprir a vontade de Deus, segundo a medida de complacência de Deus em Cristo e na Sua obra. Quão perfeita deve ser a expiação que é o fruto da devoção de Cristo a Deus! Poderia haver alguma coisa além distou Certamente que não. O aspecto da expiação que o holocausto dá é o que deve ocupar a família sacerdotal nos átrios da casa do Senhor, para sempre.
A Preparação do Sacrifício
"Então, esfolará o holocausto, e o partirá nos seus pedaços. O ato cerimonial de "esfolar" era particularmente expressivo. Era sim-plesmente remover a cobertura exterior, a fim de se patentear completamente o que havia no interior. Não era suficiente a oferta ser exteriormente "sem mancha", "as entranhas" deviam ser postas a descoberto para que cada músculo e cada juntura pudessem ser vistas. Era só no caso do holocausto que se mencionava especial-mente este ato. Isto está perfeitamente de acordo com o conjunto do tipo, e tende a fazer realçar a profunda devoção de Cristo ao Pai.
Não se limitava a cumprir uma missão. Quanto mais se revela¬vam os segredos da Sua vida íntima e as profundidades do Seu coração eram exploradas, tanto mais manifesta se tornava essa pura devoção à vontade do Pai, e o desejo ardente pela Sua glória. Estas eram as fontes de ação do grande Antítipo do holocausto. Ele foi seguramente o perfeito holocausto.
"E o partirá nos seus pedaços". Este ato apresenta uma verdade um tanto semelhante à que é ensinada no "incenso aromático moído” (Lv 16:12).
O Espírito Santo deleita-se em se deter sobre a doçura e fragrância do sacrifício de Cristo, não só como um todo, como também em todos os seus mínimos pormenores. Considerai o Holocausto como um todo e vê-lo-eis sem mancha. Considerai-o em todas as suas partes e vereis como é o mesmo. Assim era Cristo; e como tal é prefigurado neste importante tipo.
"E os filhos de Arão, os sacerdotes, porão fogo sobre o altar, pondo em ordem a lenha sobre o fogo. Também os filhos de Arão, os sacerdotes, porão em ordem os pedaços, a cabeça e o redenho, sobre a lenha que está no fogo em cima do altar". Isto era uma posição elevada para a família sacerdotal. O holocausto era totalmente oferecido a Deus. Era tudo queimado sobre o altar (!); o homem não participava dele; mas os filhos do sacerdote Arão, sendo também sacerdotes, mantinham-se em redor do altar de Deus contemplando a chama que se erguia do sacrifício aceitável em aroma suave. Era uma posição elevada — uma elevada comunhão — uma elevada ordem no serviço sacerdotal —, uma figura notável da Igreja em comunhão com Deus relacionada no perfeito cumprimento da Sua vontade na morte de Cristo. Como pecadores convictos, con¬templamos a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, e vemos nela aquilo que satisfaz todas as nossas necessidades. A cruz, neste aspecto, dá perfeita paz à consciência. Por isso, como sacerdotes, como adoradores purificados, como membros da família sacerdotal, nós podemos olhar para a cruz sob outra luz diferente, ou seja a completa consumação do santo propósito de Cristo de cumprir, até mesmo na morte, a vontade do Pai. Como pecadores convictos, permane¬cemos junto do altar de cobre, e encontramos paz por meio do sangue da expiação; mas, como sacerdotes, permanecemos ali para observar e admirar a perfeição daquele holocausto — a perfeita rendição e apresentação a Deus d'Aquele que era incontaminado.
(1) E talvez conveniente, em ligação com este ponto, informar o leitor que o vocábulo hebraico traduzido por "queimado" no caso do holocausto é inteira-mente diferente daquele que é empregado na expiação do pecado. Vou referir, devido ao interesse peculiar do assunto, algumas passagens em que ocorre esta palavra. A palavra usada no holocausto significa "incenso" ou "queimar incenso", e ocorre nas seguintes passagens numa ou noutra das suas diferentes inflexões: Levítico 6:15, "... e todo o incenso... e o acenderá sobre o altar". Deuteronômio 33:1. "E farás um altar para queimar incenso". Salmo 66:15, "... odorante fumo de carneiros"; "... o incenso que queimaste nas cidades de Judá"; Cantares 3:6, "... colunas de fumo, perfumada de mirra, de incenso". As passagens podiam multiplicar-se, porém estas bastam para mostrar o uso da palavra que ocorre no holocausto.
A palavra hebraica traduzida por "queimar", em ligação com a expiação do pecado, significa queimar, em geral, e aparece nas seguintes passagens: Gênesis 11:3, "... façamos tijolos, e queimemo-los bem"; Levítico 10:16, "E Moisés diligentemente buscou o bode da expiação e eis que já era queimado"; 2 Crônicas 16-14, "... e fizeram-lhe queima mui grande".
Assim, a oferta por expiação do pecado não só era queimada num lugar diferente, como é adotada uma palavra diferente pelo Espírito Santo para expressar o ato pelo qual era consumida. Ora nós não podemos imaginar, nem por um momento, que esta distinção seja apenas uma troca de palavras, cujo emprego é indiferente. Creio que a sabedoria do Espírito Santo é tão manifestada no emprego das duas palavras como em qualquer outro ponto de diferença entre as duas ofertas. O leitor espiritual não deixará de dar o próprio valor a esta interessante distinção.
Teríamos uma idéia muito imperfeita do mistério da cruz, se nela víssemos somente aquilo que satisfaz as necessidades do homem como pecador. Havia profundidades nesse mistério que só a mente de Deus podia aprofundar.
E, por isso, importante ver que, quando o Espírito Santo nos apresenta figuras da cruz, dá-nos, em primeiro lugar, aquela que no-lo mostra em relação com Deus. Isto seria suficiente para nos ensinar que há altos e baixos na doutrina da cruz que o homem nunca pode atingir. Pode aproximar-se da fonte de alegria e beber para sempre — pode satisfazer as mais veementes aspirações do seu espírito — pode explorá-la com todos os recursos da sua nova natureza, mas, depois de tudo, existe na cruz aquilo que só Deus pode apreciar. E por isso que o holocausto ocupa o primeiro lugar. Tipifica a morte de Cristo vista e apreciada somente por Deus. E certamente, podemos dizer que não poderíamos passar sem uma tal figura; porque não só nos dá o aspecto mais elevado da morte de Cristo, como também um pensamento precioso referente ao inte-resse particular que Deus tinha nessa morte. O próprio fato de Deus ter instituído um tipo da morte de Cristo, o qual devia ser exclusi¬vamente para Si, contém um volume de instrução para a mente espiritual.
Mas apesar de nem os anjos nem os homens puderem jamais sondar perfeitamente as profundezas espantosas do mistério da morte de Cristo, nós podemos, pelo menos, discernir algumas das suas características, que a fazem mais do que preciosa para o coração de Deus. E da cruz que Ele recolhe a mais rica glória. De nenhuma outra maneira teria sido tão glorificado como pela morte de Cristo. É na entrega voluntária que Cristo fez de Si mesmo à morte que a glória divina resplandece em todo o seu fulgor. Sobre ela foi posto também o fundamento sólido de todos os desígnios divinos.
Isto é uma verdade muito consoladora. A criação nunca poderia ter oferecido um tal fundamento. Além disso, a cruz oferece um justo canal através do qual o amor divino pode fluir. E, finalmente, pela cruz, Satanás é confundido para sempre, e "os principados e potestades" foram publicamente expostos (Cl 2:15). Estes são os gloriosos frutos resultantes da cruz; e, quando pensamos neles, podemos ver a razão por que era preciso que houvesse um tipo da cruz exclusivamente para Deus, e também a razão por que esse tipo devia ocupar uma posição eminente devia estar à cabeça da lista das ofertas. E deixai-me dizer que teria havido uma falta grave entre os símbolos se faltasse o holocausto; e haveria também uma omissão lamentável nas páginas inspiradas se tivesse sido omitido o registro desse símbolo.
Uma Oferta Queimada de Cheiro Suave ao SENHOR
"Porém a sua fressura e as suas pernas lavar-se-ão com água; e o sacerdote tudo isto queimará sobre o altar; holocausto é, oferta queimada, de cheiro suave ao SENHOR." Este ato tornava o sacrifício simbolicamente no que Cristo foi essencialmente—puro tanto no íntimo como exteriormente. Havia a mais perfeita ligação entre os motivos íntimos de Cristo e a Sua conduta exterior. Esta era a expressão daqueles. Tudo tinha o mesmo fim — a glória de Deus. Os membros do Seu corpo obedeciam perfeitamente e executavam os desígnios do Seu consagrado coração—esse coração que pulsava só por Deus e a Sua glória na salvação dos homens. Bem podia, portanto, o sacerdote "queimar tudo isto sobre o altar". Tudo era tipicamente puro e destinado para ser como alimento para o altar de Deus. De alguns sacrifícios participava o sacerdote; de outros o oferente; mas o holocausto era "todo" consumido no altar. Era exclusivamente para Deus. Os sacerdotes podiam preparar a lenha e o fogo, e ver subir a chama; e isto era um grande e santo privilégio. Mas não comiam do sacrifício. Deus era o único objetivo de Cristo no aspecto em que o holocausto tipificava a Sua morte. Não devemos ser demasiadamente simples na nossa compreensão de tudo isto. Desde o momento em que o macho sem mancha era voluntariamente apresentado à porta da lenha da congregação até ser reduzido a cinzas por ação do fogo, discernimos nele Cristo oferecendo-se a Si mesmo a Deus incontaminado pelo Espírito Eterno.
Isto torna o holocausto inefávelmente precioso para a alma. Dá-nos a visão sublime da obra de Cristo. Nessa obra Deus teve particular prazer — um gozo em que nenhuma inteligência criada podia penetrar. Isto deve ter-se sempre em vista. É desenrolado no holocausto e confirmado "pela lei do holocausto", a que nos vamos referir imediatamente.
A Lei do Holocausto
"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Dá ordem a Arão e a seus filhos, dizendo: Esta é a lei do holocausto: o holocausto será queimado sobre o altar toda a noite até pela manhã, e o fogo do altar arderá nele. E o sacerdote vestirá a sua veste de Unho, e vestirá as calças de Unho sobre a sua carne, e levantará a cinza, quando o fogo houver consumido o holocausto sobre o altar, e a porá junto ao altar. Depois, despirá as suas vestes, e vestirá outras vestes, e levará a cinza fora do arraial para um lugar limpo. O fogo, pois, sobre o altar arderá nele, não se apagará; mas o sacerdote acenderá lenha nele cada manhã, e sobre ele porá em ordem o holocausto, e sobre ele queimará a gordura das ofertas pacíficas. O fogo arderá continuamente sobre o altar; não se apagará" (Lv 6:8 -13). O fogo no altar consumia o holocausto e a gordura da oferta pacífica. Era a própria expressão da santidade divina que encontrou em Cristo e no Seu perfeito sacri¬fício um elemento próprio para se alimentar. Esse fogo não devia nunca extinguir-se. Tinha de haver manutenção perpétua daquilo que representava a ação da santidade divina. No meio das trevas e vigílias silenciosas da noite o fogo ardia sobre o altar de Deus.
"E o sacerdote vestirá a sua veste de linho". Aqui, o sacerdote toma, em figura, o lugar de Cristo, cuja justiça pessoal é represen-tada pela veste de linho. Havendo-se entregado a Si mesmo à morte de cruz, a fim de cumprir a vontade de Deus, entrou no céu com a Sua própria justiça, levando consigo os sinais de ter completado a Sua obra. As cinzas atestavam que o sacrifício estava consumado e que havia sido aceito por Deus. Essas cinzas, postas ao lado do altar, indicavam que o fogo tinha consumido o sacrifício — que era um sacrifício não apenas consumado, mas aceito. As cinzas do holocausto declaravam a aceitação do sacrifício. As cinzas da expiação do pecado declaravam que o pecado fora julgado.
Muitos dos pontos que temos estado a considerar reaparecerão perante nós no decorrer do estudo dos sacrifícios com mais clareza, precisão e poder. Postas cm contraste umas com as outras, as ofertas adquirem mais relevo. Consideradas em conjunto dão-nos uma visão completa de Cristo. São como espelhos dispostos de tal maneira que refletem, sob diferentes aspectos, a imagem do verda¬deiro e único sacrifício perfeito. Nenhuma figura por si só pode representá-Lo em toda a sua plenitude. E necessário contemplar-mo-Lo na vida e na morte como Homem e como Vítima em relação com Deus e conosco; e é assim que no-Lo apresentam os sacrifícios de Levítico.
Deus, que satisfez misericordiosamente as necessidades das nossas almas, permita que a nossa inteligência seja também iluminada para compreendermos e desfrutarmos aquilo que nos preparou.
C.H. Machintosh
Capítulo I dos Estudos sobre o Livro de Levítico da coleção Penteteuco
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