Marcas do Verdadeiro Cristianismo

terça-feira, 1 de março de 2005


I A verdadeira religião deve ter por marcas obrigar a amar seu Deus. Isso é bem justo.


No entanto, nenhuma outra como a nossa o ordenou; a nossa o fez. Ela deve ainda ter conhecido a concupiscência (do homem) e a impotência (em que ele próprio se encontra para adquirir a virtude); a nossa o fez. Deve indicar os remédios para isso, um dos quais é a prece. Nenhuma (outra) religião pediu (jamais) a Deus que o amasse e o seguisse.


II A verdadeira natureza do homem, o seu verdadeiro bem e a verdadeira virtude e a verdadeira religião são coisas cujo conhecimento é inseparável.


III É preciso, para que uma religião seja verdadeira, que tenha conhecido a nossa natureza; deve ter conhecido a grandeza e a pequenez, e a razão de ambas. Quem a conheceu, além da cristã?


IV As outras religiões, como as pagãs, são mais populares, porque se exteriorizam: não são, porém para as pessoas hábeis. Uma religião puramente intelectual seria mais proporcionada aos hábeis, mas não serviria ao povo. Só a religião cristã é proporcionada a todos, sendo composta de exterior e de interior. Ela eleva o povo ao interior e baixa os soberbos ao exterior, não sendo perfeita sem os dois, pois é preciso que o povo entenda o espírito da letra e que os hábeis submetam o seu espírito à letra (praticando o que há de exterior).


V Nenhuma outra religião propôs que nos odiemos a nós mesmos. Nenhuma outra religião pode, pois, agradar aos que se odeiam a si mesmos e que procuram um ser verdadeiramente amável. E estes, se nunca tivessem ouvido falar da religião de um Deus humilhado, a abraçariam incontinente. Nenhuma outra (religião, a não ser a cristã) conheceu que o homem é a mais excelente criatura (e ao mesmo tempo a mais miserável).


Uns, que conheceram bem a realidade de sua excelência, adquiriram por covardia e por ingratidão os sentimentos baixos que os homens, naturalmente, têm em si mesmos; e outros, que conheceram bem quanto essa baixeza é efetiva, trataram com uma soberba ridícula esses sentimentos de grandeza, que são tão naturais no homem. Nenhuma religião, a não ser a nossa, ensinou que o homem nasce com pecado; nenhuma seita filosófica o disse; portanto, nenhuma disse a verdade.


VI Se só houvesse uma religião, Deus estaria nela bem manifesto. Se só houvesse mártires na nossa religião, também.


VII Estando Deus oculto, toda religião que não diz que Deus está oculto não é verdadeira; e toda religião que a isso não faz referência não é instrutiva. A nossa faz tudo isso:

Vere tu es Deus absconditus [1].


Essa religião, que consiste em crer que o homem desceu de um estado de glória e de comunicação com Deus a um estado de tristeza, de penitência e de afastamento de Deus, mas que, depois desta vida, seremos restabelecidos por um Messias que deve vir, sempre existiu sobre a terra. Todas as coisas passaram, subsistindo aquela para a qual todas as coisas existem. Os homens, na primeira idade do mundo, foram arrastados a toda sorte de desordens, embora houvesse santos como Enoc, Lameque, e outros, que esperavam pacientemente o Cristo prometido desde o começo do mundo. Noé viu a malícia dos homens no mais alto grau e mereceu salvar o mundo em sua pessoa pela esperança do Messias, do qual ele foi figura. Abraão estava cercado de idólatras, quando Deus fez com que ele conhecesse o mistério do Messias, que ele saudou de longe. No tempo de Isaque e de Jacó, a abominação estava espalhada sobre toda a terra: mas, esses santos viviam na fé; e Jacó, morrendo e abençoando seus, filhos, exclama, num transporte que o obrigou a interromper seu discurso: Eu espero, meu Deus, o Salvador que prometeste:

Salutare tum expectabo, Domine [2].


Os egípcios estavam infectados de idolatria e de magia; o próprio povo de Deus era influenciado por seus exemplos. No entanto, Moisés e outros acreditavam naquele que não viam e o adoravam olhando para os dons naturais que ele lhes preparava.


Os gregos e os latinos, em seguida, fizeram reinar as falsas divindades; os poetas fizeram cem diversas teologias: os filósofos se separaram em mil seitas diferentes: no entanto, havia sempre, no coração da Judéia, homens escolhidos que presidiam à vinda de um Messias que só por eles era conhecido.


Ele veio, enfim, na consumação dos tempos: e, desde então, viram-se nascer tantos cismas e heresias, tantos desmoronamentos de estados, tantas mudanças em todas as coisas; e essa Igreja a que adora aquele que sempre foi adorado subsistiu sem interrupção.


E o que é admirável, incomparável e inteiramente divino, é que essa religião que sempre durou foi sempre combatida. Mil vezes esteve na iminência de uma destruição universal; e, todas as vezes que se achou nesse estado, Deus tornou a levantá-la com golpes extraordinários de potência. É assombroso que assim seja e que ela se mantenha sem dobrar-se e curvar-se sob a vontade dos tiranos.


Os Estados pereceriam se não se fizesse com que as leis se submetessem freqüentemente à necessidade. A religião, porém, nunca sofreu isso, nunca usou disso. São necessários ou esses acomodamentos ou milagres. Não é de estranhar que nos conservemos submissos, e isso não é propriamente manter-se; e ainda pereçam eles, enfim, inteiramente; não há o que tenha durado mil e quinhentos anos. Mas, que essa religião se mantenha sempre inflexível, isso é divino.


VIII (Haveria obscuridade demais se a verdade não tivesse marcas visíveis. É admirável a de se ter conservado sempre numa Igreja a e numa assembléia visível. Haveria claridade demais se só houvesse um sentimento nessa Igreja; mas, para reconhecer o que é verdadeiro, basta ver o que sempre existiu: com efeito, é certo que o verdadeiro sempre existiu e que nenhuma falsidade existiu sempre. Assim), o Messias foi sempre acreditado. A tradição de Adão era ainda nova em Noé e em Moisés. Os profetas o predisseram depois, predizendo sempre outras coisas cuja realização, verificando-se periodicamente entre os homens, assinalava a verdade de sua missão e, por conseguinte, a de suas promessas em relação ao Messias (Todos eles disseram que a lei que possuíam só gorava enquanto esperavam a do Messias e que, então, ela seria perpétua, mas que a outra dura eternamente; que, por isso, a sua lei e a do Messias da qual era ela a promessa, existiram sempre sol a terra. Com efeito, ela durou sempre, e Jesus Cristo veio em todas as circunstâncias preditas). Jesus Cristo fez milagres, assim como os apóstolos que converteram todos os pagãos; e, assim, realizando-se todas as profecias, o Messias está provado para sempre.


IX Vejo várias religiões contrárias, mas todas falsas, exceto uma. Cada qual quer ser acreditada por sua própria autoridade e ameaça os incrédulos. Não creio nelas; todos podem dizer isso, todos podem dizer-se profetas. Vejo, porém, a religião cristã, na qual encontro profecias; e é o que nem todos podem fazer.


X A única religião contrária à natureza no estado em que ela se acha, que combate todos os nossos prazeres e que, à primeira vista, parece, contrária ao senso comum, é a única que sempre existiu.


XI Toda a conduta das coisas deve ter por objeto o estabelecimento e a grandeza da religião; os homens devem ter em si mesmos sentimentos conformes ao que ela nos ensina: e, enfim, ela deve ser de tal forma o objeto e o centro para o qual tendem todas as coisas que quem souber os seus princípios poderá explicar toda a natureza do homem em particular e toda a conduta do mundo em geral.


E, sobre esse fundamento, eles (os ímpios) tomam pé para blasfemar a religião cristã, porque a conhecem mal. Imaginam que ela consiste simplesmente na adoração de um Deus considerado como grande e poderoso e eterno: o que é propriamente o deismo, quase tão afastado da religião cristã quanto o ateísmo, que lhe é totalmente contrário. E daí concluem que não vêem que todas as coisas concorrem para o estabelecimento deste ponto: que Deus não se manifesta aos homens com toda a evidência que lhe seria possível.


Mas, que daí concluam o que quiserem contra o deismo, nada concluirão contra a religião cristã, que consiste propriamente no mistério do Redentor, o qual, unindo em si as duas naturezas, a divina e a humana, retirou os homens da corrupção do pecado, para reconciliá-los com Deus em sua pessoa divina.


Ela ensina, pois, a todos os homens, estas duas verdades: que há um Deus de que os homens são capazes, e que há uma corrupção na natureza que os torna indignos dele.


Importa, igualmente, que os homens conheçam esses dois pontos; e é igualmente perigoso que o homem conheça Deus sem conhecer sua miséria, e conheça sua miséria sem conhecer o Redentor que pode curá-lo dela. Um só desses conhecimentos faz ou o orgulho dos filósofos que conheceram Deus, e não sua miséria, ou o desespero dos ateus, que conhecem sua miséria sem Redentor. E, assim como é igualmente da necessidade do homem conhecer esses dois pontos, é também igualmente da misericórdia de Deus fazer com que os conheçamos. A religião cristã o faz; é nisso que ela consiste. Examine-se a ordem do mundo sobre isso, e veja-se se todas as coisas não tendem ao estabelecimento dos dois chefes dessa religião.


XII Quem não se reconhece cheio de soberba, de ambição, de concupiscência, de fraqueza, de miséria e de injustiça, é bastante cego. E quem, assim se reconhecendo, não deseja regenerar-se, que se pode dizer de um homem... (tão pouco razoável)? Que é, pois, que se pode ter, senão estima, por uma religião que conhece tão bem os defeitos do homem, e senão desejo pela verdade de uma religião que para isso promete remédios tão desejáveis?

VERDADEIRA RELIGIÃO PROVADA PELAS CONTRARIEDADES EXISTENTES

NO HOMEM E PELO PECADO ORIGINAL

I As grandezas e as misérias do homem são de tal modo visíveis que é preciso, necessariamente, que a verdadeira religião nos ensine e que haja no homem um grande princípio de grandeza e um grande princípio de miséria. É preciso, pois, que ela nos explique essas espantosas contrariedades. Se há um só princípio de tudo, um único fim de tudo: tudo por ele, tudo para ele. É preciso, pois, que a verdadeira religião nos ensine a não adorar senão a ele e a não amar senão a ele. Mas, como nos achamos na impossibilidade de adorar o que não conhecemos e de amar outra coisa além de nós, é preciso que a religião, que instrui sobre esses deveres, nos instrua também sobre essas impossibilidades, ensinando-nos também os remédios.


É preciso que, para tornar o homem feliz, ela lhe mostre que há um Deus; que se é obrigado a amá-lo; que a nossa verdadeira felicidade é estar nele, e o nosso único mal estar separado dele; que reconheça que estamos cheios de trevas que nos impedem de conhecê-lo e de amá-lo; e que, assim, obrigando-nos os nossos deveres a amar a Deus, e as nossas concupiscências a desviar-nos dele, estamos cheios de injustiça. É preciso que nos dê satisfação dessas nossas oposições em relação a Deus e ao nosso próprio bem; é preciso que nos ensine os remédios para essas impossibilidades e os meios de obter esses remédios.


Examinem-se sobre isso todas as religiões do mundo, e veja-se se há alguma que o satisfaça como a cristã.


Serão os filósofos, que nos propõem, como todo bem, os bens que estão em nós? Será esse o verdadeiro bem? Descobriram eles o remédio para os nossos males? Será curar a presunção do homem igualá-lo a Deus? Os que nos igualaram às feras, e os maometanos, que nos deram como todo bem os prazeres da terra, até mesmo na eternidade, trouxeram, o remédio para as nossas concupiscências? Levantai vossos olhos para Deus, dizem uns; olhai para aquele ao qual vos assemelhais e que vos fez para adorá-lo; podeis tornar-vos semelhante a ele; a sabedoria vos igualará a ele, se quiserdes segui-lo. Dizem outros: Baixai vossos olhos para a terra, mísero verme que sois, e olhai para as feras, das quais sois o companheiro.


Que se tornará, pois, o homem? Será ele igual a Deus ou aos animais? Que espantosa distância! Que seremos, pois? Quem não vê, por tudo isso, que o homem está afastado, que caiu do seu lugar, que o procura com inquietude, que não pode mais tornar a encontrá-lo? E quem, então, tornará a pô-lo de pé? Os maiores homens não o conseguiram. Que religião, pois, nos ensinará a curar o orgulho e a concupiscência? Que religião, enfim, nos ensinará o nosso bem, os nossos deveres, as fraquezas que nos desviam, a causa dessas fraquezas, os remédios que podem curá-las e o meio de obter esses remédios? Todas as outras religiões não o conseguiram. Vejamos o que fará a Sabedoria de Deus, (que nos fala na religião cristã): É em vão, oh homens, que procurais em vós mesmos o remédio para as vossas misérias. Todas as vossas luzes só podem chegar a conhecer que não é em vós mesmos que descobrireis a verdade e o bem. Os filósofos o prometeram, mas não puderam fazê-lo. Eles não sabem nem qual é o vosso verdadeiro bem, nem qual é o vosso verdadeiro estado.


Como poderiam dar remédio aos vossos males, se nem ao menos o conheceram? Vossas enfermidades principais são o orgulho, que vos subtrai de Deus, a concupiscência, que vos liga à terra, e eles não fizeram outra coisa senão entreter ao menos uma dessas enfermidades. Se vos deram Deus por objeto, foi apenas para exercer vossa soberba.


Fizeram-vos pensar que lhe sois semelhantes e conformes por vossa natureza. E os que viram a vaidade dessa pretensão vos lançaram no outro precipício, fazendo-vos entender que vossa natureza é semelhante à dos animais, e vos levaram a procurar o vosso bem nas concupiscências, que são a partilha dos animais. Não é esse o meio de vos curar de vossas injustiças, que esses juizes não conheceram. Não espereis, diz ela, nem a verdade nem a consolação dos homens. Eu sou aquela que vos formou e, em seguida, a única que vos ensina o que sois. Mas, não estais, agora, no estado em que vos formei. Criei o homem santo, inocente, perfeito; enchi-o de luz e de inteligência; comuniquei-lhe minha glória e minhas maravilhas. Os olhos do homem viam, então, a majestade de Deus. Ele não se achava nas trevas que o cegam, nem na mortalidade e nas misérias que o afligem. Mas, não pode sustentar tanta glória sem cair na presunção. Quis tornar-se o centro de si mesmo, independente do meu socorro. Subtraiu-se ao meu domínio; igualando-se a mim pelo desejo de encontrar a sua felicidade em si mesmo, abandonei-o; revoltando as criaturas que lhe estavam submetidas, tornei-as suas inimigas: de maneira que, hoje, o homem se tornou semelhante aos animais, e num tal afastamento de mim que apenas lhe resta uma luz confusa do seu autor, de tal forma se extinguiram ou perturbaram todos os seus conhecimentos! Os sentidos independentes da razão, e muitas vezes senhores da razão, levaram-no à procura dos prazeres. Todas as criaturas o afligem ou o tentam; e dominam sobre ele, ou submetendo-o pela força, ou encantando-o com suas doçuras: o que é um domínio mais terrível e mais imperioso.


Eis o estado em que os homens estão hoje. Resta-lhes algum instinto poderoso da felicidade de sua primeira natureza, e eles estão mergulhados nas misérias de sua cegueira e de sua concupiscência, que se tornou sua segunda natureza.


Por esse princípio que vos revelo, podeis reconhecer a causa de tantas contrariedades que assombraram todos os homens e que os dividiram em sentimentos tão diversos. Observai, agora, todos os movimentos de grandeza e de glória que a experiência de tantas misérias não pode refrear, e vede se não é preciso que a causa disto esteja em outra natureza.


II Coisa assombrosa, no entanto, que o mistério mais distanciado do nosso conhecimento, que é o da transmissão do pecado original, seja uma coisa sem a qual não podemos ter nenhum conhecimento de nós mesmos! Sem dúvida, não há nada que choque mais a nossa razão do que dizer que o pecado do primeiro homem tornou culpáveis os que, estando tão afastados dessa fonte, parecem incapazes de participar dele. Essa emanação não nos parece somente impossível, mas nos parece até mais que injusta: com efeito, que há de mais contrário às regras da nossa miserável justiça do que danar eternamente uma criança incapaz de vontade por um pecado em que parece ter tido tão pouca parte, que cometeu seis mil anos antes de sua existência? Certamente, nada nos choca mais rudemente do que essa doutrina; no entanto, sem esse mistério, que é o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a nós mesmos. O nó da nossa condição toma suas voltas e pregas nesse abismo. De sorte que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse mistério inconcebível ao homem.


O pecado original é uma loucura diante dos homens; mas, é dado como tal. Não deveis, pois, censurar de falta de razão essa doutrina, uma vez que a dou como não tendo razão. Mas, essa loucura é mais sábia do que toda a sabedoria dos homens:

Quod stultum est Dei, sapientius est hominibus [3]


(I Coríntios, 1, 25). Com efeito, sem isso, que se dirá que é o homem? Todo o seu estado depende desse ponto imperceptível. E como se apercebeu disso, de vez que é uma coisa acima de sua razão, e que sua razão, bem longe de inventar por suas vias, afasta-se quando ela se lhe apresenta?


III Revelados esses dois estados de corrupção, é impossível que não os reconheçais.

Segui vossos movimentos, observai-vos intimamente e vede se não descobrireis ai os caracteres vivos dessas duas naturezas. Tantas contradições se achariam num sujeito simples?


Essa duplicidade do homem é tão visível que há os que pensaram que temos duas almas: um sujeito simples parecendo-lhes incapaz de tais e tão súbitas variedades, de uma presunção desmedida a um horrível abatimento de ânimo.


Todas essas contrariedades, que pareciam afastar-me mais do conhecimento da religião, foi o que mais cedo me conduziu à verdadeira.


Para mim, confesso que logo que a religião cristã descobre este princípio: que a natureza dos homens é corrompida e decaída de Deus, isso abre os olhos a ver por toda parte o caráter dessa verdade; com efeito, a natureza é tal que assinala por toda parte um Deus perdido, quer no homem, quer fora do homem.


Sem esses divinos conhecimentos, que puderam fazer os homens, senão, ou elevar-se no sentimento interior que lhes resta de sua grandeza passada, ou abater-se em vista de sua fraqueza presente? Com efeito, não vendo a verdade inteira, não puderam chegar a uma perfeita virtude... Uns considerando a natureza como incorrupta, outros como irreparável, não puderam evitar o orgulho nem a preguiça, que são as duas fontes de todos os vícios, pois só podem ou abandonar-se a isso por covardia ou furtar-se por orgulho. De fato, se conhecessem a excelência do homem, ignorariam sua corrupção; de modo que evitariam a preguiça, mas se perderiam na soberba. E, se reconhecessem a insegurança da natureza, ignorariam a dignidade; de sorte que poderiam evitar a vaidade, mas precipitando-se no desespero.


Daí vêm as diversas seitas dos estóicos e dos epicuristas, dos dogmatistas e dos acadêmicos, etc. Só a religião cristã pode curar esses dois vícios, não expulsando um e outro pela sabedoria da terra, mas expulsando um e outro pela simplicidade do Evangelho.


Com efeito, ensina aos justos, que eleva até à participação da própria Divindade, que, nesse sublime estado, trazem eles ainda a fonte de toda corrupção, que os torna, durante toda a vida, sujeitos ao erro, à miséria, à morte, ao pecado; e grita aos mais ímpios que eles são capazes da graça do seu Redentor. Assim, fazendo tremer os que justifica e consolando os que condena, tempera com tanta justeza o medo com a esperança, por essa dupla capacidade que é comum a todos, da graça como do pecado, que abaixa infinitamente mais do que a razão pode fazer, mas sem desespero; e eleva infinitamente mais do que o orgulho da natureza, mas sem desvanecer: fazendo ver bem, por isso, que, sendo a única isenta de erro e de vício, só a ela compete instruir e corrigir os homens.


Quem pode, pois, recusar-se a crer e adorar essas celestes luzes? Com efeito, não é mais claro que o dia que sentimos em nós mesmos caracteres indeléveis de excelência? E não é tão verdadeiro que experimentamos a todo momento os efeitos da nossa deplorável condição? Que nos gritam, pois, esse caso e essa confusão monstruosa, senão a verdade desses dois estados, com uma voz tão poderosa que é impossível resistir?


IV Não concebemos nem o estado glorioso de Adão, nem a natureza do seu pecado, nem a transmissão que dele se fez em nós. São coisas passadas no estado de uma natureza toda diferente da nossa e que vão além da nossa capacidade presente. Tudo isso nos é inútil saber para sair dele; e tudo o que nos importa conhecer é que somos miseráveis, corruptos, separados de Deus, mas religados por Jesus Cristo; e é disso que temos provas admiráveis sobre a terra.


V O cristianismo é estranho: ordena ao homem que reconheça que é vil e até abominável; e ordena-lhe que queira ser semelhante a Deus. Sem esse contrapeso, essa elevação o tornaria horrivelmente vão, ou esse abaixamento o tornaria horrivelmente abjeto.


VI A miséria persuade o desespero; o orgulho inspira a presunção. A encarnação mostra ao homem a grandeza de sua miséria pela grandeza do remédio de que ele necessita.


VII Não se acha, na religião cristã, um abaixamento que nos torne incapazes do bem, nem uma sanidade isenta do mal.


Não há doutrina mais própria ao homem do que essa, que o instrui de sua dupla capacidade de receber e perder a graça, por causa do duplo perigo a que sempre está exposto, de desespero ou de orgulho.


VIII Os filósofos não prescreviam sentimentos proporcionais aos dois estados. Inspiravam movimentos de grandeza pura, e não é esse o estado do homem. Inspiravam movimentos de baixeza pura, e não é esse o estado do homem. São necessários movimentos de baixeza, não por natureza, mas por penitência; não para ficar neles, mas para chegar à grandeza.


São necessários movimentos de grandeza, não por merecimento, mas por graça, e depois de se ter passado pela baixeza.


IX Ninguém é tão feliz como um verdadeiro cristão, nem tão razoável, tão virtuoso, tão amável. Com que pouco orgulho um cristão se julga unido a Deus com que pouca abjeção se iguala aos vermes da terra!


X É incrível que Deus se unisse a nós Essa consideração só é tirada em vista da nossa baixeza. Mas, se a tendes bem sincera, segui-a tão longe quanto eu, e reconhecei que somos de fato tão baixos que somos por nós mesmos incapazes de conhecer se a sua misericórdia pode tornar-nos capazes dele.


Com efeito, eu bem desejaria saber de onde esse animal, que se reconhece tão fraco, tem o direito de medir a misericórdia de Deus e de pôr-lhe os limites que a fantasia lhe sugere.


Ele sabe tão pouco o que é Deus que não sabe o que ele próprio é: e, todo perturbado pela visão do seu próprio estado, ousa dizer que Deus não pode torná-lo capaz de sua comunicação! Mas, eu desejaria perguntar-lhe se Deus lhe pede outra coisa além de que o ame conhecendo-o, e porque crê que Deus não pode tornar-se cognoscível e amável por ele, de vez que é naturalmente capaz de amor e de conhecimento. Sem dúvida, conhece ao menos que existe e que uma alguma coisa. Portanto, se vê alguma coisa nas trevas em que se encontra, e se acha algum motivo de amor entre as coisas da terra, porque, se Deus lhe dá alguns raios de sua essência, não será capaz de o conhecer e de o amar da maneira que lhe aprouver comunicar-se conosco? Há, pois, sem dúvida, uma presunção insuportável nessas espécies de raciocínios, embora pareçam fundados sobre uma humildade aparente, que não é nem sincera, nem razoável, se não nos faz confessar que, não sabendo por nós mesmos o que somos, só podemos aprendê-lo por Deus.


[1] "Na verdade, tu és Deus absconso".

[2] A tradução literal é: "Esperei a tua salvação, Senhor." (Gênese, XLIX, 18).

[3] "Porque o louco é de Deus, o sábio é dos homens".


Blaise Pascal


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“Todo-Poderoso , aquele que era , que é, e que há de vir.”
“Ora, vem, Senhor Jesus!”

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