O espírito de escravidão

sábado, 13 de fevereiro de 2010


Depressão Espiritual 
Capítulo XII
O espírito de escravidão

"Porque não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; se ê certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados". Romanos 8:15-17

Palavras mais expressivas do que estas jamais foram escritas. Elas se sobressaem mesmo num grande capítulo como este, como uma expressão de verdade que é absolutamente única. É uma das declarações mais magníficas encontradas em todas as Escrituras, contudo não há nada mais importante sobre uma declaração como esta, do que compreender exatamente por que o apóstolo a fez. O perigo a respeito de certas frases impressionantes é que temos a tendência de nos contentar com as palavras, ou com uma impres­são geral que elas exercem sobre nós; gostamos tanto delas que às vezes não compreendemos seu significado, e portanto não nos apropriamos verdadeiramente do ensino que elas visam nos trans­mitir.
Considerem esta grande afirmação. Por que Paulo a fez, qual era seu objetivo, qual foi sua razão para pronunciar estas palavras? A resposta nos é dada no versículo quinze: "Porque", diz o após­tolo, "não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor". Em outras palavras, a declaração está ligada a algo que foi dito antes, e o apóstolo tem um objetivo muito definido ao escrever estas palavras: ele está ansioso por livrar estes cristãos romanos de um espírito de desencorajamento — de um espírito de abatimento ou depressão. Talvez eles estivessem realmente sofrendo disso no momento, mas mesmo que não estivessem, ele quer se certificar de que não venham a sofrer disso, e seu alvo é prover um antídoto contra a depressão, contra esse espírito de escravidão, esse espírito de derrota, esse espírito de desencorajamento que, como já vimos, está sempre nos ameaçando em nossa vida cristã. O apóstolo não faz uma declaração tão magnífica sem um contexto, não é apenas uma verdade maravilhosa emitida subitamente. Ela aparece — como tais declarações quase invariavelmente surgem nos escritos do grande apóstolo — num momento em que ele está tra­tando de um problema bem prático. Estas epístolas que temos no Novo Testamento estão repletas de doutrina e teologia, e no entanto seria errado dizer que a coleção de epístolas do Novo Testamento é um compêndio de teologia. Não é. O fato estupendo é este, e é importante mantê-lo em mente, essas declarações e doutrinas sempre são apresentadas com algum objetivo prático em vista, e com o elemento pastoral sempre em proeminência. Estas epístolas são cartas pastorais escritas principalmente porque o apóstolo se preo­cupava em ajudar as pessoas a alcançar real alegria e vitória na fé cristã, a qual haviam aceito e crido.
Portanto, é imprescindível observar exatamente como ele veio a fazer esta declaração. Qual era a causa de desânimo nesta situação? Nada menos que o problema de viver a vida cristã, o problema, se preferir, de tratar com o pecado. Paulo começou a tratar desse problema no início do sexto capítulo desta grande epístola, e ainda está tratando dele aqui. As pessoas a quem ele está escrevendo tinham sido convertidas e creram no Senhor Jesus Cristo, mas agora estão enfrentando o problema de viver esta nova vida que receberam, num mundo que as antagoniza e que se opõe inteira­mente a elas. Também têm de vivê-la em face de certas coisas que encontram em sua própria natureza. É uma luta, é uma batalha; há pecado do lado de fora, e há pecado por dentro, e aqui temos pessoas que querem seguir o Senhor Jesus Cristo e viver da forma como Ele viveu neste mundo. E muitas vezes é quando enfrentamos essa questão e esse problema que o desânimo e a depressão tendem a surgir. Já consideramos muitos exemplos dos vários meios que o diabo, em sua sutileza, usa para nos desencorajar. Este, novamen­te, é um meio muito comum, especialmente quando a pessoa é conscienciosa, e leva muito a sério a fé cristã, o tipo de pessoa que não diz: "Agora sou convertido, e tudo está bem", mas aquela que diz: 'Esta é uma vida extraordinária e gloriosa, e devo vivê-la". Estamos considerando aqui a tentação peculiar que assedia tais pessoas.
Qual é a essência deste problema? É que elas falham em compreender certas verdades em relação à vida cristã, falham em compreender o que é possível para nós, como cristãos. Em última análise, é uma falha em entender doutrina ou, se preferirem, é em última análise mais um fracasso no domínio da fé. Vimos uma série de coisas com respeito à fé: vimos, por exemplo, que ela deve ser ativa. Muitas pessoas se esquecem disso, e acabam tendo problemas, porque não compreendem que devem colocar sua fé em ação. Então vimos que outros têm problemas porque não per­cebem que devem continuar e persistir na aplicação da fé, que não basta começar bem, porém que precisamos prosseguir, e não podemos relaxar nem por um momento. Mas aqui o problema parece ser um fracasso em compreender que a fé deve ser apropriada, que devemos tomar posse dela. Aqui está a verdade colocada diante de nós, mas se não tomarmos posse dela, ela não nos será útil. A falha em compreender isso é uma das coisas mais incríveis sobre o homem, como resultado do pecado. Todos já devemos ter perce­bido isso. Acaso já se acharam lendo uma passagem das Escrituras que haviam lido muitas vezes antes, e pensavam conhecer bem, e de repente ela se torna viva e fala com vocês de uma forma que nunca fez antes? Todos por certo tivemos esse tipo de experiência muitas vezes. Como é fácil ler as Escrituras e dar uma espécie de assentimento formal à verdade, sem nunca nos apropriarmos do que ela está dizendo!
Creio que essa é a essência deste problema específico que estamos considerando aqui, pois sempre tende a produzir o que o apóstolo chama de "espírito de escravidão" — "não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor". O que ele quer dizer com "espírito de escravidão"? Ele está falando do perigo de ter um "espírito de servo", um espírito e uma atitude de escravo. A atitude de escravo em geral surge de uma tendência de tornar a vida cristã, ou o viver a vida cristã, numa nova lei, numa lei mais alta, superior. Estou pensando em pessoas que estão bem esclarecidas em seu relacionamento com a lei — os Dez Mandamentos, ou a lei moral — como um caminho de salvação. Viram claramente que Cristo as libertou disso, e que somente Ele poderia fazer isso; sabem que seus próprios esforços jamais as capacitaram a cumprir a lei. Entendem que Cristo nos libertou da maldição da lei; não têm qualquer dúvida quanto à sua justifi­cação. Entretanto, agora começam a olhar positivamente para a vida cristã, e de uma forma muito sutil — sem ter qualquer cons­ciência disso — tornam-na num novo tipo de lei, e como resultado caem num espírito de escravidão e de cativeiro. Pensam na vida crista como uma grande tarefa a que têm que se empenhar, e à qual devem se dedicar. Leram o Sermão do Monte e compreendem que é um retrato da vida cristã, a vida que desejam viver. Voltam-se para outros ensinamentos do Senhor registrados nos Evangelhos, e vêem a mesma coisa. Então examinam as Epístolas, e lêem aquelas instruções minuciosas dadas pelos apóstolos, e dizem: "Essa é a vida cristã". E tendo chegado a essa conclusão, consideram-na algo que deve ser assumido e colocado em prática em suas vidas diárias. Em outras palavras, santidade se torna uma pesada tarefa para elas, e começam a planejar e organizar suas vidas e a incluir certas disciplinas que as capacitem a prosseguir. Esta atitude pode ser vista, de forma clássica, na igreja católica romana e em seus ensinos, em toda a idéia do monasticismo, que é nada mais do que uma grande expressão disto que estamos considerando. Vemos ali homens e mulheres que, sendo confrontados pela verdade cristã, dizem: "Obviamente, a vida cristã é uma vida nobre e sublime, e se alguém vai vivê-la com sucesso, deve se dedicar integralmente a isso". Indo ainda mais longe, dizem: "Não se pode fazer isso, e ainda continuar exercendo uma profissão, ou mesmo continuar vivendo no mundo. É preciso segregar-se do mundo, abandoná-lo completa­mente". E fazem isso. Essa é a forma extrema dessa idéia de san­tidade, de que cultivar santidade e a vida espiritual é uma ocupação de tempo integral, e que é necessário devotar-se a ela exclusivamente, e ter regulamentos e outras coisas para ser capaz de vivê-la.
De acordo com o apóstolo Paulo, isto nada mais é que um espírito de escravidão. Mas não preciso dizer que isso não está confinado aos católicos romanos, nem a outros que se denominam a si mesmos de "católicos" — pode ser bem comum, e é, entre cristãos evangélicos. Podemos muito facilmente impor a nós mesmos uma nova lei. É claro que não a chamamos de lei, e se compreendês­semos que estamos nos colocando sob uma nova lei, não o faríamos; mas ainda assim há uma tendência para fazer isso. Posso prová-lo pelas várias referências feitas a isso nas epístolas do Novo Testa­mento. Vejam, por exemplo, o argumento de Paulo ao escrever aos colossenses, onde ele tem uma passagem específica que trata desta questão. Observem como ele o expressa no fim do segundo capítulo: "Portanto ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados. Que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo. Ninguém vos domine a seu bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, metendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão, e não ligado à cabeça, da qual todo o corpo, provido e organizado pelas juntas e ligaduras, vai crescendo em aumento de Deus. Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como: não toques, não proves, não manuseies? As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; as quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne" (Colossenses 2:16-23). Isso nos dá uma idéia do que estava acontecendo na Igreja primitiva. Uma espécie de monasticismo estava surgindo de forma muito insidiosa. Já não é mais encontrado entre nós dessa forma particular, mas a tendência, a tentação, ainda está presente. Novamente, Paulo escrevendo a Timóteo, tem de advertí-lo contra a mesma coisa. Observem o que ele diz na Primeira Epístola a Timóteo, capítulo 4. "Mas o Espírito expressamente diz que nos últimos tempos apostarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios; pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo cauterizada a sua própria consciência; proibindo o casamento, e ordenando a abstinência dos manjares que Deus criou para os fiéis, e para os que conhecem a verdade, a fim de usarem deles com ações de graças". Isso certamente é algo que ainda é muito comum. Lembro-me muito bem do caso de uma senhora, uma cristã evangélica, que tinha parado de comer carne. Ela acreditava poder demonstrar claramente que o cristão não devia comer carne porque o animal teve que ser morto, e isso era uma violação do espírito de amor. Essa senhora havia imposto sobre si mesma uma lei. Qual era seu obje­tivo? Era, como ela pensava, verdadeiramente viver a vida cristã. Ela levava o cristianismo muito a sério, era uma cristã evangélica, não tinha dúvidas quanto à justificação pela fé, mas inconsciente­mente estava tornando a vida cristã numa nova lei que tinha imposto sobre si mesma. Essa passagem que eu acabei de citar, sobre espíritos enganadores que proíbem o casamento e proíbem comer carne, devia ser suficiente e para mostrar o que o apóstolo queria dizer com "espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor".
Vamos tentar interpretar isto em termos de certas coisas que podemos ver no presente, esta tendência de impor novas leis ao povo cristão. Mais adiante eu espero voltar a isto e tratar do assunto com mais detalhes, mas aqui está apresentado em princípio. Este "espírito de escravidão" sempre vem acompanhado de um espírito de temor. "Deus não nos deu o espírito de escravidão", escreveu Paulo aos gálatas, mas aqui ele o expressa assim: "Não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor".
Bem, em que sentido isso produz um espírito de temor? Em primeiro lugar, tende a produzir um temor errado de Deus. Há um temor de Deus que é certo, e se o negligenciamos ou ignoramos, é para nosso próprio risco; mas há também um temor de Deus que é errado, é um temor covarde, um temor que traz consigo tormento. Creio que as pessoas que estamos considerando tendem a desenvolver esse tipo errado de temor. Olham para Deus como se fosse um capataz, consideram-nO alguém que está constantemente vigiando o que fazem para descobrir falhas e erros nelas e puni-las de acordo. Outras pensam em Deus apenas como um severo e dis­tante legislador. Isso é bem evidente na tendência católica à qual já me referi, mas é também verdade com respeito a toda manifes­tação deste problema — Deus é alguém distante, nada mais que um grande legislador.
Entretanto, não é somente um temor de Deus, é também um temor da grandeza da tarefa. Tendo esboçado a tarefa para si mesmas, agora começam a temê-la. Por essa razão pensam que só podem viver a vida cristã se se segregarem do mundo, e que ninguém pode estar envolvido numa carreira ou profissão, e ainda viver a vida cristã. Torna-se então um temor e terror; elas passam a ter medo da tarefa. Essa é sua atitude para com a vida cristã. Não têm alegria porque a natureza gigantesca da tarefa enche-as de um espírito de temor, e estão constantemente perturbadas consigo mesmas, perguntando-se se realmente podem viver essa vida como ela deve ser vivida.
Então, uma outra forma em que este espírito de temor se manifesta, é que essas pessoas têm a tendência de temer o poder do diabo de uma forma incorreta. É preciso qualificar cada uma destas declarações. Existe um temor do diabo que é certo. Encontra­mos isto mencionado na Epístola de Judas, e também na Segunda Epístola de Pedro. Há pessoas volúveis, espiritualmente ignorantes, que fazem piadas sobre o diabo simplesmente porque são comple­tamente ignorantes a respeito dele e do seu poder. Mas, por outro lado, não devemos nos sujeitar a um temor covarde do diabo. As pessoas que estamos considerando sentem esse temor porque estão conscientes do seu poder. São pessoas espirituais — esta é uma tentação peculiar a algumas das melhores pessoas — e vêem este assombroso poder, o poder do diabo contra elas, e sentem medo. Ficam igualmente apavoradas com o pecado que está dentro delas. Estão o tempo todo acusando a si mesmas, e falando sobre o pecado e a perversão do seu próprio coração. Aqui, novamente, precisamos manter o equilíbrio. O cristão que não está consciente de sua própria pecaminosidade e da perversão do seu próprio cora­ção não passa de uma criança na fé cristã; na verdade, se ele não tem qualquer consciência disso, eu questiono se realmente é um cristão. Claramente, de acordo com as Escrituras, pessoas que não têm consciência de sua pecaminosidade, ou são principiantes ou nunca foram regeneradas. Mas isso é diferente de se ter um espírito de temor, e viver nesta condição em que a vida não passa de um "desprezo aos prazeres, e viver dias laboriosos". Isto não é tão comum assim hoje em dia. Na verdade sou tentado a dizer que os cristãos modernos são quase saudáveis demais. Nosso problema peculiar é que somos sadios e despreocupados demais. Se voltarem ao século passado, e aos séculos anteriores, vocês encontrarão uma tendência diferente — uma tendência de estar constantemente se lamentando, sempre em pesar e nunca se regozijando. Na verdade, alguns quase iam ao ponto de dizer que; se o cristão se regozijasse, alguma coisa estava errada com ele! Ora, isso também é ser culpado do espírito de temor por causa de uma consciência profunda do poder do pecado interior.
Em outras palavras, posso resumi-lo: o espírito de temor, que resulta do espírito de escravidão neste tipo de cristãos é em última análise um temor de si mesmos e um medo de fracassar. Eles dizem: "Ingressei nesta vida cristã, sim, mas a questão é: posso vivê-la? Ela é tão maravilhosa e tão sublime. Como posso viver uma vida assim, como posso subir a tais alturas?" E com essa consciência de sua própria fraqueza, da grandeza da tarefa e do poder do diabo, caem nesse espírito de escravidão e vivem oprimidos e perturbados, preocupados e cheios de medo.
Em outras palavras, posso resumi-lo: o espírito de temor, que resulta do espírito de escravidão neste tipo de cristãos é em temor", como a dizer: "Vocês viviam nesse espírito de escravidão e temor, mas foram libertados deles — por que voltar a ele?" Qual é o antídoto para esta condição? O apóstolo nos dá um esboço nesta declaração magnífica. Qual é a resposta? É que precisamos compreender a verdade concernente à doutrina do Espírito Santo e a sua habitação no cristão.
Essa é a mensagem, e de acordo com o apóstolo ela opera de duas formas. A primeira é que, ao confrontar esta imensa e gloriosa tarefa de negar-me a mim mesmo, tomar a cruz e seguir o Senhor Jesus Cristo, eu entendo que devo andar neste mundo como Ele andou. Ao compreender que nasci de novo e fui transformado por Deus segundo a imagem do Seu amado Filho, e ao começar a perguntar: "Quem sou eu para poder viver assim? Como posso ter esperança de alcançar isso?" — aqui está a resposta, a doutrina do Espírito Santo, a verdade que o Espírito Santo habita em nós. O que isso ensina? Antes de tudo, faz-me lembrar do poder do Espírito Santo que está em mim. O apóstolo já disse isso no versí­culo 13, onde ele trata da questão de como parar de viver na carne — "Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis". Aqui ele volta ao mesmo ensinamento: "Porque Deus não nos deu o espírito de temor". "Vocês precisam entender que não estão vivendo por suas próprias forças", ele diz a esses romanos. "Vocês estão pensando nesta tarefa como se tivessem que viver a vida cristã por si mesmos. Vocês sabem que foram perdoados, e podem dar graças a Deus que seus pecados foram apagados e lavados, mas parecem pensar que isso é tudo, e que foram deixados para viver a vida cristã por si mesmos. Se pensam assim", diz Paulo, "não é de espantar que estão vivendo sob um espírito de temor e escravidão, porque desse ponto de vista a coisa é totalmente sem esperança. Significa simplesmente que vocês têm uma nova lei, que é infinita­mente mais difícil do que a velha lei. Mas esse não é o caso, porque o Espírito Santo habita em vocês".
Na realidade, Paulo tratou dessa questão desde o princípio do oitavo capítulo. Por exemplo, observem o que ele diz no terceiro versículo: "Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne pecaminosa, pelo pecado condenou o pecado na carne". O que ele quer dizer com "o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne"? Ele quer dizer que a lei não podia salvar ninguém, a lei não podia capacitar ninguém a viver a vida cristã, porque a lei é fraca, por causa da fraqueza da minha carne. "O que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne". Não há carne na lei, portanto não podem falar sobre a fraqueza da carne da lei. O que significa é que a lei foi dada, mas que o homem, em si mesmo, é ordenado a cumpri-la. A fraqueza da carne está no homem, não na lei. A lei não é fraca, é o homem que deve cumpri-la que é fraco. Ouvi um idoso pregador expressar isso muito bem. Ele usou a ilustração de um homem cavando uma horta com uma pá, e enquanto estava cavando, o cabo da pá quebrou. Ele salientou o ponto que não havia nada de errado com a pá em si, era o cabo que era muito fraco. A pá em si era forte, feita de ferro; o problema estava no cabo, que era feito de madeira, e portanto era fraco. Não é igualmente verdadeiro que quando impomos uma nova lei a nós mesmos nesta vida cristã, a qual precisamos guardar por nossas próprias forças, estamos nos conde­nando ao fracasso? Mas não devemos fazer isso, porque o Espírito agora habita em nós. "Vós não estais na carne, mas no Espírito". Observem como o assunto é desenvolvido dos versículos 5 ao 14. A diferença essencial entre o homem natural e o cristão, é que o último tem o Espírito de Cristo habitado nele. Qualquer que seja a experiência que um homem teve, se ele não tem o Espírito de Cristo, ele não é um cristão: "Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele".
Aqui ele volta a esse mesmo argumento. Ele diz: "Vocês não precisam estar sob esse espírito de escravidão". Por que não? Porque o Espírito Santo está em vocês e Ele os fortalecerá e lhes dará poder. Paulo está sempre repetindo essa mensagem. Ouçam-no novamente em Filipenses 2:13: "Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade". "Operai a vossa salvação". Como? "Com temor e tremor". Somos um pouco sadios demais hoje em dia. "Operai a vossa salvação com temor e tremor". As pessoas não temem no momento da con­versão, e prosseguem não temendo; não conhecem o significado da palavra tremor: "Operai a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade". Isso é o Espírito novamente. Este é o modo de se livrarem desse espírito de escravidão e desse falso espírito de temor. Devemos nos conscientizar de que o Espírito de Deus está em nós. Devemos olhar para Ele, buscar Sua ajuda e confiar nEle. Isso não quer dizer que devemos ser passivos. Sig­nifica que cremos, e enquanto lutamos Ele está nos fortalecendo. De fato, nem sequer teríamos nos dado o trabalho de nos esforçar, se Ele não nos tivesse induzido a isso. Ele opera em nós, e nós trabalhamos, e quando compreendemos isso, a tarefa não é impos­sível. Paulo, na passagem paralela no quarto capítulo de Gálatas diz: "Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho" — o Espírito do Seu próprio Filho. Acaso compreendemos que, como cristãos, temos em nós o mesmo Espírito Santo que estava no Filho de Deus quando Ele esteve aqui na terra? O Pai dá o Espírito, e é o mesmo Espírito que estava no Filho que é dado a nós. O Espírito que O capacitou é o mesmo que nos capacita. Esse é seu argumento.
Passando para o segundo princípio, a presença do Espírito Santo em nós nos lembra do nosso relacionamento com Deus. Esta é uma coisa maravilhosa. "Não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai". A presença do Espírito Santo dentro de nós nos lembra da nossa filiação, sim, nossa filiação adulta. Não somos infantes, o próprio termo significa que somos filhos crescidos e alcançamos a idade adulta. Somos filhos no sentido mais amplo e em possessão de todas as nossas faculdades. Uma compreensão clara disso nos livra do espírito de escravidão que leva ao temor. Não dissipa o "temor reverente e piedoso", mas dissipa o temor trazido pelo espírito de escravidão.
Como faz isso? Bem, somos capacitados a compreender que nosso objetivo ao viver a vida cristã não é simplesmente alcançar certos padrões, mas agradar a Deus porque Ele é nosso Pai — "o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai". O escravo não tinha permissão de dizer "Aba", e o espírito de escra­vidão não olha para Deus como Pai. Ele não captou o fato de que Deus é Pai, e ainda O considera um Juiz que condena. Mas isso é errado. Como cristãos, precisamos aprender a nos apossar pela fé do fato que Deus é nosso Pai. Cristo nos ensinou a orar: "Pai Nosso". Este Deus eterno Se tornou nosso Pai, e no momento em que compreendemos isso, tudo o mais tende a mudar. Ele é nosso Pai e está sempre cuidando de nós, Ele nos ama com um amor eterno, Ele nos amou tanto que enviou Seu Filho unigénito a este mundo e à cruz para morrer por nossos pecados. Esse é nosso relacionamento com Deus, e a partir do momento que compreendemos isso, tudo se transforma. Doravante meu desejo não é mais guardar a lei, mas agradar meu Pai. A natureza nos ensina algo sobre isso. Amor filial, reverência filial, temor filial são tão diferentes daquele temor servil. Estão baseados no desejo de agradar nosso Pai, e no momento em que captamos isso, perdemos aquele espírito de escravidão. Nossa vida cristã deixa de ser uma questão de regula­mentos e regras, e passa a ser marcada pelo desejo de expressar nossa gratidão por tudo que Ele fez por nós.
Isso, todavia, não esgota o assunto. "O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdei­ros com Cristo". Observem o argumento, a lógica irrefutável. Se somos filhos de Deus, então estamos relacionados com o Senhor Jesus Cristo. Ele é "o primogênito entre muitos irmãos", e somos parte da família de Deus como filhos e herdeiros. Vocês já obser­varam a coisa assombrosa que João diz no capítulo 17, versículo 23? Notem as palavras do Senhor, quando Ele ora ao Pai: "Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade, e para que o mundo conheça que tu me enviaste a mim, e que os tens amado a eles como me tens amado a mim". Nosso Senhor diz ali que Deus o Pai nos ama como amou a Ele, o unigénito Filho de Deus. Então começamos a entender isso, que agora somos filhos de Deus. Temos esta nova dignidade, esta nova posição elevada e gloriosa em que nos encontramos. Voltem novamente àquela oração sacerdotal e observem como o Senhor diz que devemos glorificá-lO neste mundo exatamente como Ele glorificou Seu Pai. Vocês já tinham percebido isso? Isso é a vida cristã, essa é a razão de viver a vida cristã; é compreender que pertenço a Deus e que devo glorificá-l0. É assim que devo encará-la. Que posição maravilhosa! E o Espírito está em mim, e me capacita a fazê-lo. Ele transforma minha perspectiva, e eu perco o espírito de escravidão que leva ao temor.
É assim que eu o entendo; entendo que o Espírito Santo habita em mim. Esse é o argumento de Paulo no sexto capítulo da Primeira Epístola aos Coríntios: "Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo?" Esse é o meio de vencer os pecados da carne. Tenho que fazer constantemente esta pergunta às pessoas que vêm a mim com algum problema ou dificuldade, e dizem: "Tenho orado sobre isso"; e eu digo: "Meu amigo, você sabe que o seu corpo é o templo do Espírito Santo?" Essa é a resposta. Digo-o de novo, mesmo com o risco de ser mal-interpretado, mas essas pessoas, num certo sentido, deveriam orar menos e pensar mais. Precisam lembrar-se de que seus corpos são "os templos do Espírito Santo que habita neles". A oração sempre é essencial, mas raciocinar também é essencial, porque a oração pode ser apenas um mecanismo de escape, e às vezes um grito no escuro por pessoas que estão desesperadas e derrotadas. A oração precisa ser inteli­gente, e é somente àqueles que sabem que seus corpos são templos do Espírito Santo, que a resposta virá e o poder será dado.
Então, finalmente, é claro, o Espírito Santo em nós nos lembra do nosso destino. "Se nós somos filhos, somos logo herdeiros tam­bém, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo". É assim que devemos contemplar a vida cristã. Paulo usa muito este argumento, e frequentemente encerra dizendo o que ele expressa tão gloriosa­mente nos dois últimos versículos de Romanos capítulo oito. O cristão tem certeza absoluta do seu destino, ele está persuadido, acima e além de qualquer dúvida, que "nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o pre­sente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus nosso Senhor". Não é uma questão de manter um padrão, não é uma questão de lutar em vão para fazer algo; é uma questão de se preparar para o lugar para onde você está indo. O meio de se livrar do espírito de escravidão e temor, é saber que você é um filho de Deus, está destinado para o céu e para a glória, e que tudo o que você vê dentro e fora de si mesmo não pode impedir que esse plano seja cumprido. Então a vida cristã é uma questão de se preparar para isso. "Esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé". Fé em quê? Fé no meu destino final. Ou considerem o que João diz em sua Primeira Epístola, no terceiro capítulo, versículo dois: "Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é o veremos". Ao que isso nos leva? Leva-nos ao que lemos no versículo seguinte: "E qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é puro". Não há nada tão capaz de promover santidade como a compreensão de que somos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, que nosso destino é certo e seguro, que nada pode impedir isso. Compreendendo isso, nós nos purificamos assim como Ele é puro, e sentimos que não há tempo a perder. Esse é o argumento do apóstolo nestes três versí­culos, e é muito prático. Essa é a maneira de viver a vida cristã! Não a transforme numa lei, mas compreendem que vocês receberam o Espírito Santo. Então desenvolvam isso em suas vidas. Seu Pai está cuidando de vocês. Ele está zelando por vocês — sim, vou usar a linguagem bíblica — Ele é zeloso a seu respeito, porque vocês pertencem a Ele. Pertencem a Cristo, são irmãos dEle. O Espírito Santo está habitando em seus corpos e são destinados para a glória. Ao contemplar tal destino, digam: Toma, minha alma, tua plena salvação, Ergue-te acima do pecado, temor e preocupação, Para encontrar gozo em cada lugar, Algo para fazer, uma tarefa a realizar. Pensa no Espírito que habita em ti, No sorriso que o Pai te dirige, No Salvador que por ti morreu na cruz, Filho do céu — deverias lamentar?
Como é errado viver num espírito de escravidão e temor! "Filho do céu, deverias lamentar?" Nunca! "Pensa no Espírito que habita em ti, no sorriso que o Pai te dirige, no Salvador que por ti morreu na cruz — filho do céu, deverias lamentar?" Essa estrofe de um antigo hino é uma boa exposição destes três versí­culos. Firmem-se nisso, apropriem-se disso, e pratiquem-no. Não se preocupem com o que sentem. A verdade sobre vocês é gloriosa. Se estão em Cristo, ergam-se acima do pecado, do temor e da preocupação. Apossem-se da sua plena salvação, triunfem e pre­valeçam!

Martyn Lloyd-Jones

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“Todo-Poderoso , aquele que era , que é, e que há de vir.”
“Ora, vem, Senhor Jesus!”

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