quinta-feira, 13 de agosto de 2009
Introdução
O Livro de Levítico pode ser considerado "o guia do sacerdote", porque é esta a sua característica. Está cheio de princípios para orientação dos que desejam gozar de intimidade com Deus no serviço sacerdotal. Tivesse Israel continuado a andar com o Senhor segundo a graça pela qual Ele os havia acabado de tirar da terra do Egito, e eles teriam sido, para Si, "um reino sacerdotal e povo santo" (Ex 19:6). Foi isto porém que deixaram de fazer. Afastaram-se, colocaram-se debaixo da lei e não puderam cumpri-la. Por isso, o Senhor teve de eleger determinada tribo, e dessa tribo uma certa família, e dessa família determinado homem, e a esse homem e seus filhos foi dado o elevado privilégio de se aproximarem de Deus como sacerdotes.
Ora os privilégios de uma tal posição eram imensos; mas ela tinha também as suas grandes responsabilidades.Requeria o exercício constante de um espírito de discernimento. "Os lábios do sacerdote guardarão a ciência, e da sua boca buscarão a lei, porque ele é o anjo do Senhor dos Exércitos" (Mq 2:7). O sacerdote não só devia levar o juízo da congregação perante o Senhor, como também expor as ordenações do Senhor à congregação. Devia ser o instrumento sempre pronto de comunicação entre o Senhor e a assembléia. Não só devia conhecer, pessoalmente, os pensamentos de Deus, como interpretá-los para o povo.
Tudo isto requeria naturalmente uma vigilância contínua, uma atenção permanente e um estudo constante das páginas inspiradas, a fim de assimilar, até ao íntimo da sua alma, todos os preceitos, juízos, estatutos, leis, mandamentos e ordenações do Senhor Deus de Israel, de forma a poder instruir a congregação nas "coisas que deviam ser feitas".
Não havia lugar para caprichos ou invenções, nem para as interferências plausíveis do homem ou invenções astutas de conveniência humana. Tudo fora prescrito com precisão divina e a peremptória autoridade da expressão "assim diz o Senhor". Minuciosos como eram os pormenores dos sacrifícios, ritos e cerimônias, não foi deixado lugar para a imaginação do homem. Nem sequer lhe era permitido decidir qual a espécie de sacrifício que se devia oferecer em qualquer ocasião, nem de que maneira devia apresentar-se esse sacrifício. O Senhor havia previsto tudo. Nem o sacerdote nem a congregação tinham qualquer autoridade para decretar, estabelecer ou sugerir tanto como um simples pormenor na larga série das ordenações da dispensação mosaica. Tudo era ordenado pela Palavra do Senhor; o homem só tinha de obedecer.
Para o coração obediente isto constituía uma misericórdia indizível. É absolutamente impossível dar o valor devido ao privilégio de podermos recorrer à Palavra de Deus e encontrar nela, dia a dia, instruções completas sobre todos os pormenores respeitantes à fé e ao nosso serviço.
Tudo que necessitamos é uma vontade submissa, um espírito humilde, e um coração sincero. O livro que Deus deu para nos guiarmos é tão completo como podíamos desejar. Nada mais precisamos. Imaginar, ainda que seja por momentos, que alguma coisa pode ser acrescentada pela sabedoria humana constitui um insulto feito ao cânone sagrado. Ninguém pode ler o Livro de Levítico sem admirar o extremo cuidado do Deus de Israel em proporcionar ao Seu povo instruções tão pormenorizadas quanto a tudo que se refere ao Seu serviço e culto. O leitor mais superficial poderá, ao menos, aprender esta interessante e proveitosa lição.
Atualmente, mais do que em qualquer outra época, é necessário fazer chegar esta lição aos ouvidos da Igrej a professa. De toda a parte surgem dúvidas sobre a suficiência divina das Sagradas Escrituras. Nalguns casos estas dúvidas são expressas abertamente e com
propósito deliberado; noutros, com menos freqüência, são insinuadas encobertamente por meio de alusões ou inferências. Dizem ao navegante cristão, direta ou indiretamente, que a carta divina não basta para os múltiplos e complicados pormenores da viagem—que tem havido tantas alterações no oceano da vida, desde que essa carta foi feita, que, em muitos casos, é inteiramente deficiente para os propósitos da moderna navegação.
Dizem-lhes que as correntes, marés, costas, canais e praias desse oceano são totalmente diferentes agora do que eram há alguns séculos, e que, por conseguinte, temos de recorrer ao auxílio, que a moderna navegação dispensa, a fim de suprir as deficiências da velha carta, a qual, admitem, de fato, ter sido perfeita para a época em que foi escrita.
O nosso veemente desejo é que o leitor cristão possa, com clareza e decisão, opôr-se a este grave insulto feito ao Livro inspirado, do qual cada linha procede do coração do Pai, e foi escrita por homens inspirados por Deus Espírito Santo. Desejamos que possa contestar esse insulto, quer ele se apresente sob a forma de uma audaz blasfêmia ou sob uma astuciosa e plausível inferência. Seja qual for o disfarce com que se apresente, deve a sua origem ao inimigo de Cristo, que é o inimigo da Bíblia e inimigo da alma.
Se, na verdade, a Palavra de Deus não fosse suficiente, então, em que situação ficaríamos? Para onde nos voltaríamos? A quem nos dirigíamos pedindo socorro se o Livro do nosso Pai fosse, de algum modo, defeituoso? Deus diz que o Seu livro "pode instruir-nos perfeitamente para toda boa obra" (2 Tm 3:17). O homem diz: não; há muitas coisas sobre as quais a Bíblia não se pronuncia, e que, todavia, precisamos de saber. Em quem devemos crer? Em Deus ou nos homens? A nossa resposta aos que põem em dúvida a divina suficiência da Escritura é simplesmente esta: Ou não és homem de Deus, ou aquilo para que buscas encontrar aprovação não é "uma boa obra". Isto é bem claro e ninguém poderá vê-lo de outro modo se considerar cuidadosamente a passagem de 2 Timóteo 3:17.
Oh, se tivéssemos um sentimento mais profundo da plenitude, da majestade e da autoridade da Palavra de Deus! Temos absoluta necessidade de ser fortificados neste ponto. Precisamos de um sentimento profundo, vigoroso e constante da autoridade suprema do cânone sagrado e da sua completa suficiência para todos os tempos, climas e posições, para todos os estados pessoais, sociais, e eclesiásticos, de modo a podermos resistir a todos os esforços que o inimigo faz para depreciar este inestimável tesouro. Que os nossos corações compreendam mais do espírito destas palavras do Salmista: "A tua palavra é a verdade desde o princípio, e cada um dos teus juízos dura para sempre " (SI 119:160).
Esta série de pensamentos foi-nos sugerida no decorrer da análise ao capítulo onze do Livro de Levítico. Nele vemos como o Senhor faz uma descrição admirável em pormenores dos animais, aves, peixes e répteis, dando ao Seu povo os sinais para poderem conhecer os que eram limpos e os que eram imundos. A súmula de todo este notável capítulo encontra-se nos últimos dois versículos: "Esta é a lei dos animais, e das aves, e de toda alma vivente que se move nas águas, e de toda alma que se arrasta sobre a terra,para fazer diferença entre o imundo e o limpo, e entre os animais que se podem comer e os animais que não se devem comer."
Animais que Remoem e Têm Unhas Fendidas
No que dizia respeito aos animais, duas coisas eram essenciais para se poderem considerar limpos, era preciso que remoessem e tivessem as unhas fendidas. "Tudo o que tem unhas fendidas, e a fenda das unhas se divide em duas, e remói, entre os animais, aquilo comereis." Um só destes sinais seria insuficiente para determinar a pureza segundo a lei cerimonial. Exigia-se a existência dos dois. Ora se estes dois sinais bastavam para o israelita se orientar quanto à pureza ou impureza dos animais, sem qualquer explicação acerca dos motivos ou significado das características, o cristão, contudo, tem liberdade de inquirir sobre as verdades espirituais contidas nessas leis cerimoniais.
Que nos ensinam, portanto, os dois sinais num animal limpou A ação de ruminar exprime o processo natural de "digerir interiormente" os alimentos que se comem; enquanto que a unha fendida representa o caráter da nossa conduta. Existe, como sabemos, uma íntima relação entre estas duas coisas na vida cristã. O que se alimenta dos verdes pastos da Palavra de Deus, e assimila no íntimo o que tomou — o que é capaz de combinar a meditação calma com o estudo acompanhado de oração, manifestará, sem dúvida, na sua conduta um caráter capaz de glorificar Aquele que graciosamente nos deu a Sua Palavra para formar os nossos hábitos e dirigir os nossos caminhos.
Digerir a Palavra
É de recear que muitos dos que lêem a Bíblia não assimilem a Palavra. Estas duas coisas são completamente diferentes. Uma pessoa pode ler capítulo após capítulo, livro após livro, e não assimilar uma só linha. Podemos lera Bíblia como se cumpríssemos uma rotina monótona; porém, por falta de faculdades assimiladoras — de órgãos digestivos — não tiramos nenhum proveito com a leitura. Devemos ter isto bem presente em nosso pensamento. O gado que pasta na erva verde pode ensinar-nos uma salutar lição. Primeiro, alimenta-se diligentemente do refrescante pasto, depois repousa tranqüilo a remoêlo. Belo e admirável quadro do cristão alimentando-se do conteúdo precioso do volume inspirado, para depois o digerir intimamente. Que esta experiência se generalize mais e mais entre nós! Se estivéssemos mais habituados a fazer da Palavra de Deus o alimento necessário às nossas almas, o nosso estado seria certamente mais vigoroso e salutar. Guardemo-nos de fazer da leitura da Bíblia uma forma morta, um dever frio, um trabalho de rotina religiosa.
O mesmo cuidado é necessário quanto à exposição pública da Palavra de Deus. Que os que expõem as Escrituras aos seus semelhantes se alimentem previamente delas e as digiram por si mesmos. Que leiam e assimilem, em particular, não apenas para os outros, mas para si mesmos. É triste ver um homem ocupado continuamente em procurar alimento para outros, enquanto que ele próprio morre de fome. Por outro lado os que assistem ao ministério público da Palavra não devem fazê-lo maquinalmente e por força de hábito religioso, mas, sim, com o sincero desejo de "ler", tomar nota, aprender e assimilar intimamente o que ouvem. Assim os que ensinam e os que são ensinados gozarão de uma vida espiritual sã e bem provida e manifestar-se-á o caráter próprio da vida cristã.
A Vida Interior e a Conduta Exterior Vão Juntas
Mas é preciso recordar que, além de remoer, o animal deveria ter as unhas fendidas. Quem não conhecesse bem o guida do sacerdote e não tivesse experiência do cerimonial divino, poderia declarar limpo qualquer animal só porque o via a remoer. Isto teria sido um erro sério. Uma mais cuidadosa atenção ao guia divino mostraria imediatamente que devia observar também o andar do animal— devia observar as marcas deixadas por cada movimento —, devia olhar para o resultado de ter as unhas fendidas. "Destes, porém, não comereis: dos que remoem ou dos que têm unhas fendidas: o camelo, que remói, mas não tem unhas fendidas; este vos será imundo" (versículo 4).
Igualmente, as unhas fendidas não eram característica suficiente se não fossem acompanhadas pela faculdade de remoer. "O porco, porque tem unhas fendidas, e a fenda das unhas divide em duas, mas não remói; este vos será imundo" (versículo 7). Em suma, as duas coisas eram inseparáveis no caso de cada animal limpo; quanto à aplicação espiritual é da máxima importância sob o ponto de vista prático. A vida íntima e a conduta devem harmonizar-se. Um homem pode professar amar a Palavra de Deus — alimentar-se dos verdes pastos da alma — de a estudar e assimilar; mas se as suas pisadas na senda da vida não correspondem ao ensino da Palavra de Deus esse homem não está limpo.
E, por outro lado, poderá andar aparentemente com rigor farisaico; mas se o seu caminhar não é o resultado da vida íntima nada vale. É preciso que haja no íntimo o princípio divino que toma e digere o rico pasto da Palavra de Deus; de outro modo a marca dos seus passos de nada servirá. O valor de cada característica depende da sua inseparável relação com a outra.
Isto traz-nos forçosamente à memória uma solene passagem da Primeira Epístola de João, na qual o apóstolo nos apresenta as duas características pelas quais podemos conhecer os que são de Deus: "Nisto são manifestos os filhos de Deus, e os filhos do diabo: qualquer que não pratica a justiça e não ama a seu irmão não é de Deus" (1 Jo 3:10). Aqui temos as duas grandes características da vida eterna e que todos os verdadeiros crentes possuem, a saber, "justiça" e "amor". O sinal exterior e o interior. Ambos devem coexistir.
Alguns cristãos professos argumentam só com o amor, assim chamado; outros com a justiça. Segundo Deus, não pode existir um sem o outro. Se aquilo a que chamam amor existe sem a justiça prática, não será, na realidade, mais que uma disposição de espírito débil e condescendente, que tolera toda a espécie de erro e de mal. E se o que chamam justiça sem o amor, isso pode, quando muito, revelar a disposição de uma alma severa, orgulhosa, farisaica e egoísta, assente na miserável base de reputação pessoal. Porém, sempre que a vida divina está em vigor haverá caridade interior aliada a uma sincera justiça prática. Estes dois elementos são essenciais para a formação do verdadeiro caráter cristão. E preciso que haja o amor que se manifesta pelas mais insignificantes coisas de Deus, e, ao mesmo tempo, a santidade que retrocede com horror ante tudo que é de Satanás.
Animais Aquáticos
Vejamos agora o que o cerimonial levítico nos ensina acerca de "tudo o que há nas águas". Aqui também encontramos a dupla marca. "Isto comereis de tudo o que há nas águas: tudo o que tem barbatanas e escamas nas águas, nos mares e nos rios; aquilo comereis. Mas tudo o que não tem barbatanas nem escamas, nos mares e nos rios, todo réptil das águas, e toda alma vivente que há nas águas, estes serão para vós abominação" (versículos 9 e 10). Duas coisas eram necessárias para que um peixe fosse considerado limpo, no sentido cerimonial, "barbatanas e escamas", que, evidentemente, representavam certa aptidão para o elemento e o meio em que deviam mover-se.
Porém, havia mais do que isso. Creio que temos o privilégio de poder discernir nas propriedades naturais com que Deus dotou as criaturas que vivem nas águas certas qualidades espirituais que pertencem à vida cristã. Se o peixe precisa de "barbatanas" para se mover na água e de "escamas" para resistir à ação desse elemento, também o crente precisa de força espiritual para poder avançar através da cena que o rodeia e, ao mesmo tempo, resistir à sua influência, impedindo que ela penetre em si, mantendo-a no exterior. Estas qualidades são preciosas. As barbatanas e as escamas têm muita significação e oferecem muita instrução para o crente. Sob o aspecto cerimonial, elas falam-nos de duas coisas que nos são particularmente necessárias, a saber: energia espiritual para avançarmos através do elemento que nos rodeia e força para nos preservar da sua ação. De nada nos servirá uma sem a outra. É inútil possuir a força necessária para avançar através do mundo, se não podemos resistir à influência do mundo; e ainda que pareça sermos capazes de resistir à influência mundana, contudo, se nos falta a força somos defeituosos. As "barbatanas" sem as "escamas" não serviriam, nem tampouco as "escamas", sem as "barbatanas". Ambas eram requeridas para se considerar o peixe limpo, segundo o cerimonial; e nós, para sermos adequadamente equipados, precisamos de estar protegidos contra a influência penetrante de um mundo que jaz no maligno, e, ao mesmo tempo, dispor de capacidade para prosseguir rapidamente.
A conduta de um cristão deve mostrar que ele é estrangeiro e peregrino na terra. A sua divisa deve ser "avançar"; sempre e unicamente avançar. Sejam quais forem as suas circunstâncias, ele deve ter os seu s olhos postos no lar que está para além deste mundo passageiro. Está dotado, pela graça, de capacidade espiritual para ir avante — para vencer energicamente todos os obstáculos e realizar as ardentes aspirações do seu espírito nascido do céu. E, enquanto prossegue assim vigorosamente, "forçando a sua passagem para os céus", ele tem de guardar e proteger o seu homem interior contra todas as influências exteriores.
Oh, se fôssemos mais inclinados a avançar! Se tivéssemos mais apego às coisas que são de cima e mais desprendimento às coisas deste mundo! Se, devido a estas considerações sobre as sombras cerimoniais do Livro de Levítico, chegarmos a desejar mais ardentemente esses dons, que, embora tão obscuramente representados, nos são, contudo, tão necessários, teremos motivos para bendizer ao Senhor.
As Aves
Nos versículos 13 a 24 do nosso capítulo temos a lei respeitante às aves. Todas as que eram da espécie carnívora, isto é, todas as que se alimentavam de carne, eram imundas. As onívoras, ou as que comiam de tudo, eram imundas. Todas as que, embora dotadas da faculdade de se elevarem aos céus, se arrastavam na terra, eram imundas. Quanto a esta última classe havia exceções (versículos 21 e 22); mas a regra geral, o princípio determinado, a ordenação em vigor, eram tão distintos quanto possível: "todo réptil que voa, que anda sobre quatro pés, será para vós uma abominação" (versículo 20). Tudo isto é muito simples como meio de instrução para nós. As aves que se alimentavam de carne; as que ingeriam tudo; e todos os répteis que voavam, deviam ser considerados imundos para o Israel de Deus, pois assim o determinara o Deus de Israel.
O homem espiritual não terá dificuldade em reconhecer a conveniência de semelhante ordenação. Nos hábitos das três classes de aves citadas aqui podemos ver não só o motivo lógico por que eram declaradas imundas, mas também a admirável representação daquilo que existe na natureza humana, e de que todo o verdadeiro cristão deve guardar-se. Deve recusar tudo quanto seja de natureza carnal. Além disso não deve alimentar-se indistintamente de tudo que lhe é apresentado. Deve provar se "as coisas em que se discorda" são puras. Deve ter cautela com tudo que ouve. Deve exercer j uízo espiritual sobre todas as coisas, discernindo-as segundo o discernimento divino. Finalmente, deve usar, por assim dizer, as suas asas — deve elevar-se por meio das asas da fé ao seu lugar na esfera celeste a que pertence. Em resumo, não deve haver nada vil, nada confuso, nada imundo na vida do cristão.
Os Répteis
Quanto aos répteis a regra era a seguinte: "Todo réptil que se arrasta sobre a terra será abominação; não se comerá" (versículo 41).
Quão admirável é a graça condescendente do Senhor! Pode curvar-Se para dar instruções acerca de um réptil! Não queria deixar o Seu povo embaraçado acerca das coisas mais vulgares. O guia do sacerdote continha as mais pormenorizadas instruções sobre todas as coisas. Deus não queria que o Seu povo fosse contaminado por causa do contato com o que era imundo, nem que provasse o que era imundo. Eles não pertenciam a si próprios, e, portanto, não deviam proceder como bem lhes parecesse. Pertenciam ao Senhor, invocavam o Seu nome; estavam identificados com Ele.
A Sua Palavra devia ser a sua regra de conduta em todas as coisas. Por ela deviam aprender o estatuto cerimonial relativo aos animais, às aves, aos peixes e répteis. Não deviam apoiar-se nos seus próprios pensamentos, seguir o seu raciocínio ou deixarem-se guiar pelas suas próprias imaginações, em assuntos desta natureza. A Palavra de Deus devia ser o seu único guia. As outras nações podiam comer o que entendessem; mas Israel gozava o grande privilégio de só comer o que era do agrado do Senhor.
A Santidade de Deus e a Santidade do Crente
O povo de Deus devia não só guardar-se ciosamente de comer o que era imundo, como até o simples contato estava proibido (veja-se os versículos 8,24,26 a 28,31 a 41). Era impossível que qualquer membro do Israel de Deus tocasse no que era imundo sem se tornar impuro. Este princípio é amplamente desenvolvido tanto na lei como nos profetas. "Assim diz o Senhor dos exércitos: Pergunta, agora, aos sacerdotes, acerca da lei, dizendo: Se alguém leva carne, santa na aba da sua veste, e com a aba tocar no pão, ou no guisado, ou no vinho, ou no azeite, ou em qualquer outro mantimento, ficará este santificado? E os sacerdotes, respondendo, diziam: Não. E disse Ageu: Se alguém, que se tinha tornado impuro pelo contato com um corpo morto, tocar nalguma destas coisas, ficará isso imundo? E os sacerdotes, respondendo, diziam: Ficará imunda." (Ag 2:11 -13). O Senhor queria que o Seu povo fosse santo em todas as coisas. Não deviam comer nem tocar em qualquer coisa que fosse imunda. "Não façais as vossas almas abomináveis por nenhum réptil que se arrasta, nem neles vos contamineis, para não serdes imundos por eles". Depois vem a razão poderosa desta separação. "Porque eu sou o Senhor vosso Deus; portanto, vós vos santificareis, sereis e santos, porque eu sou santo; e não contaminareis a vossa alma por nenhum réptil que se arrasta sobre a terra. Porque eu sou o Senhor, que vos faço subir da terra do Egito, para que eu seja vosso Deus, e para que sejais santos porque eu sou santo"; (versículos 43-45). É conveniente notar que a santidade pessoal do povo de Deus— a sua inteira separação de toda a espécie de imundície, provém das suas relações com Ele. Não se baseia sobre o princípio de "Afasta-te de mim, porque sou mais santo do que tu"; mas simplesmente sobre isto: "Deus é santo", e portanto todos os que estão em relação com Ele devem ser santos também. A dignidade de Deus requer, em todo o sentido, que o Seu povo seja santo. "Mui fiéis são os teus testemunhos: a santidade convém à tua casa, Senhor, para sempre". Que poderia convir à casa de Jeová senão a santidade? Se se perguntasse a um israelita: "Porque recuas assim desse réptil que rasteja pelo caminhou" Ele responderia: Jeová é santo e eu pertenço-Lhe. Ele disse: "Não lhe tocarás". Assim também agora se alguém pergunta a um cristão porque é que ele se mantém separado de mil e uma coisas em que os homens do mundo tomam parte, a sua resposta deve ser simplesmente esta: "O meu Pai é santo." Este é o verdadeiro fundamento da santidade pessoal. Quanto mais contemplarmos o caráter divino e compreendermos a importância das nossas relações com Deus, em Cristo, pela energia do Espírito Santo, tanto mais santos seremos na prática. Não pode haver progresso no estado de santidade em que o crente é introduzido; mas há, e deveria haver, progresso na apreciação, experiência e manifestação prática desta santidade. Estas coisas nunca devem confundir-se. Todos os crentes estão na mesma condição de santidade ou de santificação; mas a sua medida prática pode variar até ao infinito. Isto é fácil de compreender. A condição resulta de havermos sido trazidos perto de Deus pelo sangue da cruz; a medida prática depende de nos mantermos perto pelo poder do Espírito. Não é que alguém possa arrogar-se de possuir alguma coisa superior — um grau de santidade mais elevado do que geralmente se possui — para de algum modo ser melhor do que o seu próximo. Tais pretensões são inteiramente condenáveis aos olhos de qualquer pessoa inteligente.
Mas se Deus, em Sua graça infinita, desce até o estado baixo em que nos encontramos para nos elevar à altura da Sua bendita presença, identificados com Cristo, não terá então o direito de determinar qual deve ser o nosso caráter, visto havermos sido trazidos perto? Quem ousaria pôr em dúvida uma verdade tão evidente? Ainda mais, não devemos nós procurar manter este caráter que Ele nos atribuiu Devemos ser acusados de presunção se o fizermos? Era presunção para um israelita recusar tocar um réptil? Não, mas seria atrevida e perigosa presunção fazê-lo. É possível que não conseguisse fazer com que um estrangeiro incircunciso compreendesse ou apreciasse o motivo da sua conduta, mas isso não era da sua competência. Se o Senhor havia dito "Não lhe toques" não era porque um israelita, em si mesmo, fosse mais santo que um estrangeiro, mas porque o Senhor é santo, e Israel pertencia-Lhe. O discípulo circuncidado da lei de Deus tinha de aplicar os olhos e o coração para discernir o que era limpo e o que não era. Um estrangeiro não via diferença. Assim deve ser sempre. Só os filhos da Sabedoria podem justificá-la e aprovar os seus celestiais ensinos.
A Experiência de Pedro em Atos 10
Antes de deixar o capítulo décimo primeiro de Levítico, o leitor pode, com muito proveito espiritual, compará-lo com o capítulo décimo de Atos dos Apóstolos versículos 11 a 16. Quão estranho devia ter parecido àquele que havia sido educado desde a infância nos princípios do ritual Moisaico, ver descer do céu um vaso "no qual havia de todos os animais, quadrúpedes e répteis da terra e aves do céu"; e não só ver um tal vaso, tão repleto, como ouvir uma voz que dizia: "Levanta-te, Pedro, mata e come".
Coisa maravilhosa! Não examinar as unhas dos animais ou verificar os seus hábitos! Não havia necessidade disso. O vaso e o seu conteúdo tinham descido do céu. Isto bastava. O Judeu podia entrincheirar-se atrás das estreitas barreiras do ritual Judaico e exclamar: "De modo nenhum, Senhor, porque nunca comi coisa alguma comum ou imunda"; mas a maré da graça divina elevava-se majestosamente por cima dessas barreiras a fim de abranger no seu vasto contorno "toda a sorte de objetos", e de elevá-los na direção do céu, no poder e na autoridade daquelas preciosas palavras: "Não faças tu comum ao que Deus purificou." Pouco importava o que havia no vaso se Deus o havia purificado. O Autor do Livro de Levítico ia elevar os pensamentos do Seu servo por cima das barreiras que esse livro tinha erigido a toda a magnificência da graça celestial. Queria ensinar-lhe que a verdadeira pureza — a pureza que o céu exigia — já não consistia no fato de um animal remoer, ter as unhas fendidas, ou de qualquer marca cerimonial semelhante, mas, sim, em se ter sido lavado no sangue do Cordeiro, que purifica de todo o pecado e torna o crente bastante limpo para trilhar o pavimento de safira dos átrios celestiais.
Era uma notável lição para um judeu aprender. Era uma lição divina à luz da qual deviam desvanecer-se as sombras da antiga economia. A mão da graça soberana abriu de par em par a porta do reino, mas não para admitir qualquer coisa que seja imunda. Isto nunca poderia ser. No céu não pode entrar coisa alguma impura. Portanto, o critério já não podia ser feito por uma unha fendida, mas sim por aquilo "que Deus purificou".
Quando Deus purifica um homem é indubitável que está limpo. Pedro ia ser enviado para abrir o reino aos Gentios, assim como já o tinha aberto aos Judeus; e era preciso que o seu coração judaico se dilatasse. Precisava de se elevar acima das escuras sombras de uma época que passara à luz esplendorosa que irradiava de um céu aberto em virtude de um sacrifício consumado. Precisava de sair da corrente estreita dos preconceitos judaicos e de se deixar levar por essa poderosa maré de graça que ia espraiar-se sobre todo o mundo perdido. Tinha também de aprender que o padrão que devia determinar a verdadeira pureza já não era carnal, cerimonial e terrestre, mas, sim, espiritual, moral, e celestial.
Seguramente, podemos dizer que estas lições, que o apóstolo aprendeu no terraço da casa de Simão, o curtidor, eram preciosas. Eram as mais próprias para dulcífícar, dilatar e elevar um espírito que havia sido formado no meio de deprimentes influências do sistema judaico. Demos graças ao Senhor por estas preciosas lições. Louvemo-Lo pela rica posição em que nos colocou pelo sangue da cruz. Demos-Lhe graças por já não estarmos sujeitos às restrições "Não toques nisto", "não comas isso", "não toques naquilo" porque a Palavra de Deus declara que "toda a criatura de Deus é boa, e não há nada que rejeitar, sendo recebido com ações de graças, porque pela Palavra de Deus e pela oração é santificada" (1 Tm 4:4 - 5).
Capítulo 11 do "Estudo sobre o Livro de Levítico da Série de notas sobre o Pentateuco"
Nenhum comentário:
Postar um comentário