Unidade, Liberdade e Caridade

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006


Unidade, Liberdade e Caridade

Minha preocupação é chamar a atenção para uma das grandes tragédias da cristandade contemporânea, que é especialmente visível no meio de todos nós que somos chamados (e, na verdade, é como nós nos chamamos) cristãos evangélicos. Numa única palavra: essa tragédia chama-se polarização. Serei mais específico sobre o que quero dizer.

O pano de fundo para a tragédia é a nossa substancial concordância no histórico cristianismo bíblico. Nossa união nos fundamentos da fé cristã é coisa grande e gloriosa. Cremos em Deus Pai, infinito e pessoal, santo, criador e sustentador do Universo. Cremos em Jesus Cristo, o único Deus-homem; em seu nascimento virginal, em sua vida encarnada, na autoridade do seu ensino, em sua morte expiatória, na sua ressurreição histórica, e em seu retorno pessoal á terra. Cremos no Espírito Santo por cuja inspiração especial as Escrituras foram escritas e por cuja graça pecadores são hoje justificados e nascidos de novo, transformados na imagem de Cristo, incorporados à Igreja e enviados para servir no mundo. Nestas e em outras grandes doutrinas bíblicas, permanecemos firmes pela graça de Deus, e permanecemos juntos.

Contudo, nós não somos unidos. Nós nos separamos uns dos outros por assuntos pouco importantes. Algumas das questões que nos dividem são teológicas; outras temperamentais. Teologicamente, por exemplo, podemos discordar na relação exata entre soberania divina e responsabilidade humana, na “ordem” e ministério pastoral da igreja (se deve ser episcopal, presbiteriano ou independente) e até onde os crentes podem envolver-se numa “mistura” denominacional sem que se comprometam a si mesmos e a fé que professam; nas relações Igreja-Estado; em quem está qualificado para ser batizado e no volume de água a ser usado; em como interpretar profecia, em quais dons espirituais estão disponíveis hoje e quais são os mais importantes. Estas são algumas das questões nas quais crentes igualmente dedicados e bíblicos discordam entre si. São questões que os reformadores chamam de “adiaforia”, questões “indiferentes”. Desta forma, embora pretendemos continuar defendendo nossa própria convicção das Escrituras, em conformidade com a luz que nos tem sido dada, procuraremos não pressionar dogmaticamente a consciência de outros crentes, mas tratar a cada um com liberdade, em amor e respeito mútuo. Não se pode fazer coisa melhor do que mencionar o famoso epigrama atribuído a um certo Rupert Meldenius e citado por Richard Baxter. Em coisas essenciais, unidade; nas não-essenciais, liberdade; em todas as coisas, caridade.

Estamos, também, separados uns dos outros temporariamente. Esquecemo-nos, às vezes, que Deus ama a diversidade e tem criado uma rica profusão de tipos humanos, temperamentos e personalidades. Além disso, o nosso temperamento tem mais influência na nossa teologia do que geralmente imaginamos ou admitimos. Embora a nossa compreensão da verdade bíblica dependa da iluminação do Espírito Santo, ela é inevitavelmente colorida pelo tipo de pessoa que somos, pela época na qual vivemos e pela cultura a que pertencemos. Alguns de nós, por disposição e formação, são mais intelectuais que emocionais; outros, mais emocionais que intelectuais. Repetindo, a disposição mental de muitos é conservadora (detestam mudanças e sentem-se ameaçados), enquanto outros são, por natureza, rebeldes à tradição (o que eles detestam é monotonia, considerando mudança como algo próprio de sua natureza). Questões como estas surgem de diferenças temperamentais básicas. Porém, não devemos permitir que o nosso temperamento nos controle. Pelo contrário, devemos deixar que as Escrituras julguem nossas inclinações naturais de temperamento. Caso contrário, acabaremos por perder o nosso equilíbrio cristão.

O título deste ensaio é “Cristianismo Equilibrado”, pois uma das maiores fraquezas que os cristãos (especialmente os evangélicos) manifestam é a tendência para o extremismo ou desequilíbrio. Parece que não existe outro passatempo de que Satanás mais goste do que o de tirar o equilíbrio dos crentes. Embora eu não reivindique qualquer amizade pessoal com ele e nem tampouco qualquer conhecimento íntimo da sua estratégia, suponho ser este um dos seus hobbis favoritos.

Por “falta de equilíbrio”, entendemos o deleite que sentimos em habitar em uma ou outra das regiões extremas da verdade. Se pudéssemos apoiar-nos em ambos os pólos, simultaneamente, exibiríamos um saudável equilíbrio bíblico. Em lugar disto, tendemos a “cair em extremos”. Como Abraão e Ló, nos separamos uns dos outros. Empurramos outras pessoas para um pólo, enquanto que o pólo oposto é mantido como nossa propriedade.

Teologicamente falando, ninguém na história da igreja britânica nos preveniu melhor deste perigo do que Charles Simeon, professor do King’s College e pároco da igreja Holy Trinity, em Cambridge, no início do século passado. Considere esta conversa imaginária com o apóstolo Paulo, que ele incluiu numa carta para um amigo em 1825. “A verdade não está no meio e nem no extremo, mas nos dois extremos. Aqui estão dois extremos: calvinismo e arminianismo. - Paulo, como te situas em relação a eles? No meio-termo intermediário? - Não. - Nos extremos? - Não. - Como então? - Nos dois extremos: hoje eu sou um calvinista convicto: amanhã, um convicto armeniano. - Bem, bem, Paulo, compreendo a tua esperteza: vai a Aristóteles e aprende o meio termo intermediário!

Simeon continua: - “Mas, meu irmão, eu sou um desventurado. Primeiramente li Aristóteles e gostei muito; mas, desde que comecei a ler Paulo, tenho captado algo de seus estranhos conceitos, oscilações (não vacilações) de um pólo para o outro. Às vezes, sou um poderoso calvinista e, outras, um débil arminiano. Desta forma, se extremos te deleitarem, sou a pessoa certa para ti; lembra-te somente: não é para um extremo que devemos ir, mas para ambos”- um adágio que Charles Smyth descreveu como “tão naturalmente desconcertante para a mente inglesa” (Memoirs of the Life of the Rev. Charles Simeon, editado por Willian Carus 1847, p. 600. Simeon and Church Order por Charles Smyth, 1940, p. 185). [Nota do Monergismo.com: Embora concordemos que devemos evitar extremos, não cremos que a questão Calvinismo versus Arminianismo seja um exemplo válido para o caso. É um absurdo sugerir que Paulo daria tal resposta. Aqueles que afirmam tal não conhecem o verdadeiro Calvinismo. A Bíblia ensina claramente aquilo que é conhecido como Calvinismo, e este envolve todas as áreas da nossa vida. Não há nenhuma reconciliação entre esses dois extremos: o Calvinismo é bíblico e o Arminianismo é falacioso. Quem, pois esperaria uma reconciliação?]

As palavras de Simeon são sabedoria para hoje. Sejam nossas polarizações basicamente teológicas ou temperamentais, devemos evitá-las. Meu irmão, permita-me dar quatro exemplos da inutilidade de polarizações desnecessárias, o que será feito nos capítulos seguintes.

John Stott

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“Todo-Poderoso , aquele que era , que é, e que há de vir.”
“Ora, vem, Senhor Jesus!”

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