Intelecto e Emoção

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006


INTELECTO E EMOÇÃO

O primeiro exemplo situa-se no campo do intelectual e do emocional. Alguns crentes são tão friamente intelectuais que se questiona serem eles mamíferos de sangue quente, para não dizer seres humanos, ao passo que outros são tão emocionais que se deseja saber se são possuidores de uma porção mínima de massa cinzenta. Eu me sinto constrangido a dizer que o mais perigoso dos dois extremos é o anteintelectualismo de depois a entrega ao emocionalismo. Vemos isto em algumas pregações evangelísticas, que não consistem em outra coisa senão em um apelo para decisão com pouquíssima, ou nenhuma pregação do evangelho e pouca, ou nenhuma, argumentação com o povo a respeito das Escrituras, à maneira dos apóstolos.

A mesma tendência é evidente na atual busca de experiências emocionais, vividas de primeira mão, e na exaltação da experiência como critério da verdade, ao passo que a verdade deveria ser sempre o critério da experiência. O meu receio é que esta tendência seja um legado semicristianizado do existencialismo secular. O que parece Ter filtrado na consciência pública da famosa distinção de Martin Heidegger entre existência “autêntica” e “inautêntica” é que devemos abandonar cada convenção e disciplina e cada estilo de vida imposto que ameace a nossa autenticidade pessoal.

Devemos, acima de tudo, escolher que seremos nós mesmos, pensando e fazendo somente o que nos pareça ser autêntico no momento. À luz deste princípio, tenho ouvido jovens crentes argumentando assim:

“Ninguém pode esperar que eu creia numa doutrina só porque está nas Escrituras; só crerei se a doutrina autenticar-se a mim como verdadeira. Você não pode esperar que eu vá à igreja, que leia a Bíblia ou que ore só porque estes são deveres cristãos; eu somente posso fazer estas coisas se sentir vontade. E eu não posso, possivelmente, amar o meu próximo (para não dizer o inimigo) só porque sou ordenado a fazer isto, mas somente se o Espírito Santo produzir um relacionamento de amor com o próximo, autêntico e real”.

Ao lado da corrente insistência na experiência existencial, segue uma desconfiança, um menosprezo ou intelecto. A fuga da razão é um sinal distintivo da vida secular contemporânea (pelo menos é assim nos Estados Unidos). O professor Richar Hofstadter documentou isto muito bem em seu livro “Anti-intelellectualism in American Life” (Antiintelectualismo na vida americana) (Vintage, 1962). E um impressionante exemplo, recente, pode ser encontrado em Joe McGinness, quando, sob o título “The Selling of the President 1968” (A Venda do Presidente, 1968), ele relata a campanha eleitoral de Richard Nixon, em 1968. Os organizadores da campanha ficaram convencidos de que Nixon perdera a eleição para Kennedy, em 1960, porque Kennedy tinha uma imagem televisiva bem melhor que a de Nixton. Então, consultaram Marshall McLuham para orientá-los em como fazer com que Nixon se “projetasse eletronicamente”, e como transformá-lo de “um advogado seco e sem graça” em um “ser humano afetuoso e animado”. “Política”- o professor MacLuham assegurou-lhes - “é apenas uma ciência racional”.

“Eleições”- insistiu - “não são ganhas na bancada eleitoral apresentada, mas nas imagens. “Faça os eleitores gostarem da cara do sujeito” e a campanha está virtualmente ganha”.

Esta é, naturalmente, uma situação séria, quando uma nação desenvolvida é, então, levada a abdicar de sua responsabilidade política, deixar de debater os assuntos do dia ou formar sua opinião e votar, não pelo que os candidatos são, mas pelo que vulgarmente é chamado de reação “instintiva” aos candidatos. Porém , este tipo de antiintelectualismo é muito mais sério na igreja evangélica, pois a Palavra de Deus ensina que a nossa razão é parte da imagem divina na qual Deus nos criou. Ele é o Deus racional que nos fez seres racionais e nos deu uma revelação racional. Negar nossa racionalidade é, portanto, negar nossa humanidade, vindo a ser menos do que seres humanos. As Escrituras proíbem que nos comportemos como cavalos e mulas que são “sem entendimento”, e ao contrário, ordenam que sejamos “maduros” em nosso entendimento” Sl. 32:9, I Co. 14:20. De fato, a Bíblia nos diz constantemente que cada área da vida cristã é dependente do uso cristão de nossas mentes. Permita-me dar um exemplo: o exercício da fé. Muitos acham a fé e inteiramente irracional. Mas as escrituras nunca colocam fé e razão uma contra a outra, como sendo incompatíveis.

Pelo contrário, fé somente pode nascer e crescer em nós pelo uso de nossas mentes: “em ti confiarão os que conhecem o teu nome” (Sl 9:10); a confiança deles brota do conhecimento da fidelidade do caráter de Deus. Novamente, em Isaías 26:3: “Tu conservarás em paz aquele cuja mente está firme em ti, porque ele confia em ti”. Aqui, confiar em Deus e manter a mente em Deus são sinônimos e uma perfeita paz é o resultado.

À luz desta ênfase bíblica a respeito do lugar da mente na vida cristã, o que é que devemos dizer para a geração moderna dos antiintelectuais, os emocionais? Sinto muito ter de dizer que eles estão se autoproclamando intensamente, como sendo crentes mundanos.

Pois “mundanismo” não é apenas uma questão (como fui ensinado a acreditar) de fumar, beber e dançar, nem tampouco aquela velha questão sobre embelezar-se, ir a cinemas, usar minissaias, mas o espírito do século. Se absorvemos sem qualquer exame os caprichos do mundo (neste caso, o existencialismo), sem que primeiro sujeitemos isto a uma rigorosa avaliação bíblica, já nos tornamos crentes mundanos.

“Temos como princípio fundamental”, disse Wesley para um dos seus primeiros críticos, “que renunciar o uso da razão é renunciar à religião, que “religião e razão seguem de mãos dadas” e que “toda religião irracional é falsa religião”(citado por R.W. Burtner, R. E. Chiles em “A Compend of Wesley’s Theology”, 1954, p. 26).

Sinto-me na obrigação de acrescentar, contudo, que se o antiintelectualismo é perigoso, a polarização oposta é quase igualmente perigosa. Um hiperintelectualismo árido e sem vida, uma preocupação exclusiva com ortodoxia não é cristianismo do Novo Testamento. Não há dúvida de que os crentes primitivos eram profundamente motivados pela experiência de Jesus Cristo. Se o apóstolo Paulo pode escrever sobre a “excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor”, e o apóstolo Pedro pode dizer que os crentes “alegram-se com gozo inefável e glorioso” (Fp. 3:8; I Pedro 1:8), ninguém pode facilmente acusá-los de tristonhos ou insensíveis.

A verdade é que Deus nos fez criaturas, tanto emocionais, como racionais. Não somos apenas mamíferos de sangue quente, mas seres humanos, capazes de sentimentos profundos de amor e de ira, de compaixão e de temor. Escrevo sobre isto com convicção pessoal, pois, de alguma forma, diverge da educação que recebi em escola particular da Inglaterra. Não tenho a menor intenção de morder a mão que me alimentou, pois reconheço o quanto devo aos privilégios educacionais que me foram concedidos. Contudo, sinto-me crítico daquela característica distintiva da tradição da escola particular, conhecida como “o lábio superior rígido”.

Visto que o primeiro sinal externo de profunda emoção interna é geralmente o tremor do lábio superior, mantê-lo rígido é reprimir as emoções e cultivar as virtudes (mais masculino que feminino, mais anglo-saxão que latino) de coragem, vigor e autocontrole. O que não poderia acontecer era um rapaz chorar em público; choramingo era reservado às moças e crianças. Desde aqueles dias de pré-guerra, contudo, tenho lido o Novo Testamento muitas vezes e descoberto que Jesus não teve o acanhamento de demonstrar suas emoções. Em duas ocasiões diferentes somos informados de que Ele, na realidade, caiu em prantos em público, primeiro ao lado do túmulo de um amigo e, depois, na impenitente Jerusalém. Neste caso, então, Jesus não foi educado no mesmo sistema, da escola particular britânica!

Se é um perigo negar nosso intelecto, é um perigo também negar nossas emoções. Mesmo assim, é o que muitos de nós estamos fazendo.

Alvin Toffer escreve sobre alguns jovens americanos que estão exibindo os sintomas do que ele chama de “choque do futuro”. Ele se refere a uma pequena aldeia marítima em Creta, cujas 40 ou 50 cavernas estão ocupadas por “trogloditas americanos, desertores”: rapazes e moças que, na maior parte, desistiram de fazer qualquer esforço maior para enfrentar a alta velocidade explosiva das complexidades da vida. Um repórter visitou-os em 1968 e comunicou-lhes a notícia do assassinato de Robert F. Kennedy. Resposta: silêncio: “Nenhum choque, nenhuma emoção, nenhuma lágrima!” É este o novo fenômeno: Desertores dos Estados Unidos e desertores das emoções. Eu compreendo o não-envolvimento, o desencanto e, mesmo o não-comprometimento. Porém, para onde foi todo o sentimento?” (Future Shock, Pan Books 1971, p.331).

Pamela Hansford Johnson, que fez a reportagem dos horrores sádicos dos assassinatos dos “Moors”, escreveu que assassinos por lucro ou gratificação são quase sempre destituídos daquilo que os psicólogos chamam de “comoção” - capacidade de penetrar nos sentimentos dos outros; e continuou dizendo: “corremos o risco de criar uma sociedade sem qualquer comoção, na qual ninguém se preocupe com o ouro, senão consigo mesmo, ou com outra coisa que não auto-satisfaça instantâneamente.

Procuramos sexo sem amor, violência por “prazer”. Estamos encorajando o entorpecimento da sensibilidade...” (On Iniquity, McMillan 1967, pp. 18 e 24).

Uma das causas da insensibilidade da nossa sociedade é a televisão, pois ela traz para os nossos lares, numa seqüência que nunca pára, cenas de violência, brutalidade e tragédia que assaltam tão poderosamente nossas emoções de maneira tal que não conseguimos suportar. Fazemos, então, duas coisas: ou nos levantamos e desligamos o aparelho, ou fazemos pior: permitimos que a imagem continue a brilhar na tela, mas desligamos o nosso interior do que está sendo mostrado.

Continuamos assistindo, mas sem nos envolver emocionalmente.

Talvez eu possa dar um exemplo pessoal, desta vez não a respeito da televisão, mas de um concerto da peça “O Messias”, de Handel, no Royal Albert Hall. Quando o concerto atingiu seu clímax com o coro Aleluia, com a afirmações majestosas de que “o Senhor Deus onipotente reina... Rei dos reis e Senhor dos senhores” e com o “Amém “final, confesso que fiquei profundamente comovido. Quando os músicos pararam, a audiência explodiu num estrondo de aplausos, que foi uma maneira perfeitamente apropriada de expressar sua apreciação pelo maestro, coro, orquestra e solistas. Mas, então, à medida que os aplausos se extinguiam, todos começaram a pegar seus chapéus e casacos, a rir, a conversar e a empurrarem-se ao se dirigirem para as portas de saída.

Será presunção minha dizer que eu não podia mover-me? Eu tinha sido transportado para o Céu, para a eternidade, para a presença do próprio grande Rei. Não foi suficiente para mim aplaudir os músicos; eu quis curvar a cabeça e adorar a Deus. Sou eu estranho ao reagir com tão profunda emoção religiosa? Ou será que estou certo ao perguntar o que estão as pessoas fazendo com suas emoções a ponto de ouvir um concerto ou ir a um culto e permanecer insensíveis? Eu não estou questionando por emocionalismo, pois é uma exibição artificial, uma pretensão espúria. Mas emoções, sentimentos genuínos surgidos legitimamente que devem ser expressados, e não sufocados.

Qual, então, a verdadeira relação entre o intelecto e a emoção?

Muhammed Iqbal, o jurisconsulto e poeta, que se tornou presidente da Liga Muçulmana, que preparou o caminho para um Paquistão independente e que trabalhou por um novo entendimento entre o Oriente e o Ocidente, escreveu em um dos seus poemas:

“No Ocidente, intelectos é a fonte da vida.

No Oriente, amor é a base da vida.”

Através do amor, intelecto cresce familiarizado com a realidade.

“Intelecto dá estabilidade ao trabalho do amor.

Levantai e lançai os fundamentos de um novo mundo.

Enlaçando intelecto ao amor”.

Isto está perfeitamente certo. Porém, o intelecto não é prerrogativa do Ocidente, nem o amor (ou emoção), do Oriente. Algumas nações ou raças podem verdadeiramente ter mais de intelecto e outras mais de emoção, mas intelecto e emoção não podem estar restritos a alguns temperamentos ou algumas culturas, pois ambos são parte de toda a humanidade que Deus criou. Ambos - intelecto e emoção - pertencem à autêntica experiência humana.

Em particular, nada coloca o coração tão em fogo como a verdade.

A verdade não é fria e seca. Pelo contrário, é cheia de calor e paixão, e em qualquer que seja o momento em que novas perspectivas da verdade de Deus surgem diante de nós, não podemos ser apenas contemplativos.

Somos movidos a responder, seja em penitência, ira, amor, ou adoração.

Pense nos dois discípulos a caminho de Emaús; na primeira páscoa, á tarde, quando o Senhor ressuscitado falava com eles. Quando Ele desapareceu, eles disseram um para o outro: “Porventura não ardia em nós o nosso coração quando, pelo caminho, nos falava e quando nos abria as Escrituras?”(Lc. 24:32). Eles tiveram uma experiência emocional durante toda a tarde. Por isso, descreveram a sensação que tiveram como um coração ardente. E qual foi a causa do ardor espiritual? Foi Cristo, abrindo-lhes as Escrituras!

É o mesmo hoje. Sempre que lemos as Escrituras e Cristo as abre para nós, para que captemos verdades novas, nossos corações devem arder dentro de nós. Como F.W. Faber disse: “Teologia profunda é a melhor lenha para a devoção, pega fogo, que é uma beleza e, uma vez acesa, queima por muito tempo”(citado por Ralph G. Turnbull, em A Minister’s Obstacles, 1946, Baker 1972, p. 97).

Esta combinação verdadeira de intelecto e emoção deveria ser visível, tanto na pregação como na compreensão da Palavra de Deus.

Ninguém expressou isto melhor do que o Dr. Martyn Lloyd Jones, que bem define o que é pregação: “Lógica em fogo! Razão eloqüente! São contradições? ?Claro que não! Razão acerca da verdade tem de ser poderosamente eloqüente, como você pode verificar no caso do apóstolo Paulo e de outros. É teologia em fogo. E uma teologia que não traz fogo (eu afirmo), é uma teologia defeituosa. Pregação é teologia vinda através de um homem em fogo” (Preaching and Preachers, Hodder & Stoughton 1971, p. 97).

John R. W. Stott

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“Todo-Poderoso , aquele que era , que é, e que há de vir.”
“Ora, vem, Senhor Jesus!”

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