A jactância da carne

terça-feira, 11 de agosto de 2009


O outro lado da carne

Existem só as obras da carne que mencionamos até agora, ou há outras obras carnais? Os pecados da carne que temos feito notar até aqui são as paixões do corpo humano.

Mas agora devemos fixar nossa atenção em outro aspecto da carne. Recordarão que anteriormente afirmamos que a carne consiste nas obras da alma assim como também as paixões do corpo.

Até agora só falamos sobre a parte do corpo, deixando quase sem tocar a parte da alma. É totalmente certo que o crente deve desprender-se dos pecados do corpo, mas também tem que opor-se às obras de sua alma, porque aos olhos de Deus são tão corruptas como os pecados do corpo.

Segundo a Bíblia, as obras da «carne» são de duas categorias (embora ambas sejam da carne): as más e as hipócritas. A carne não somente pode produzir pecados repelentes mas também condutas louváveis; não só o baixo e o ruim mas também o elevado e o nobre; não só as paixões pecaminosas mas também a boa intenção.

É a esta segunda parte que vamos nos dedicar agora.

A Bíblia emprega a palavra «carne» para descrever a vida ou a natureza corrupta do homem, que abrange a alma e o corpo. No ato criador de Deus, a alma foi colocada entre o espírito e o corpo, ou seja, entre o que é celestial ou espiritual e o que é terrestre ou físico. Seu dever é administrá-los de acordo com a função de cada um, conforme a sua adequação, mas mantendo-os intercomunicados, para que, por meio desta perfeita harmonia, o homem possa finalmente alcançar a plena espiritualidade. Desgraçadamente, a alma cedeu à tentação que surgiu dos órgãos físicos, escapando assim da autoridade do espírito e aceitando o controle do corpo. Em conseqüência, a alma e o corpo ficaram unidos para ser a carne. A carne não só está «livre do espírito», mas também é totalmente contrária ao espírito. Por isso a Bíblia afirma que «a carne luta contra o espírito» (Gl. 5:17).

A oposição da carne contra o espírito e contra o Espírito Santo é dupla:

1) pecando: se rebela contra Deus e infringe a lei de Deus, e

2) fazendo o bem: obedece a Deus e segue a vontade de Deus.

Naturalmente, o elemento corporal da carne, cheio de pecado e de paixões, não pode fazer outra coisa senão expressar-se em muitos pecados, entristecendo o Espírito Santo. A parte da carne que é a alma, no entanto, não está tão poluída como o corpo. A alma é o princípio de vida do homem; é seu eu próprio, e consta das faculdades da vontade, da mente e da emoção.

Do ponto de vista humano, as obras da alma podem não ser todas más. Simplesmente se centram no pensamento, na idéia, no sentimento e nas preferências e aversões da pessoa.

Embora todos estes se concentrem no eu, não são necessariamente pecados poluentes. A característica básica das obras da alma é a independência ou auto-dependência: Embora a parte da alma não esteja tão poluída como a parte corporal, mesmo assim é contrária ao Espírito Santo. A carne põe o eu no centro e eleva a vontade própria acima da vontade de Deus. Pode servir a Deus, mas sempre segundo sua idéia, não segundo a idéia de Deus. Fará o que seja bom a seus olhos. O eu é o princípio que está detrás de cada ato. Pode ser que não cometa o que o homem considera pecado; pode ser, inclusive, que tente cumprir os mandamentos de Deus com todas suas forças; entretanto, o «eu» nunca deixa de estar no coração da atividade.

Quem pode desentranhar a falsidade e a vitalidade deste eu? A carne não só se opõe ao espírito, pecando contra Deus, mas também tentando servi-Lo e agradá-Lo. Opõe-se ao Espírito Santo e o apaga, apoiando-se em sua própria força, em vez de confiar por completo na graça de Deus e deixar-se levar pelo Espírito.

Podemos encontrar muitos crentes ao nosso redor que, por natureza são bons, pacientes e afetuosos. Agora bem, o que o crente odeia é o pecado; em conseqüência, se pode livrar dele e das obras da carne descritas em Gálatas 5, versículos 19 a 21, então se sente satisfeito.

Mas o que o crente admira é a justiça; em conseqüência, se esforçará em agir corretamente, desejando possuir os frutos de Gálatas 5, versículos 22 e 23. Entretanto, o perigo se encontra aqui, porque o cristão não chegou a aprender a aborrecer a sua carne em sua totalidade.

Deseja simplesmente livrar-se dos pecados que surgem dela. Sabe como resistir um pouco às ações da carne, mas não vê que a própria carne, em sua totalidade, deve ser destruída.

O que o engana é que a carne não somente pode produzir pecado mas também pode fazer o bem. Se ainda fizer o bem é evidente que ainda está viva. Se a carne tivesse morrido definitivamente, a capacidade do crente de fazer o bem e de fazer o mal teria morrido com ela.

Uma capacidade para operar coisas boas mostra que a carne ainda não morreu.

Sabemos que os homens originalmente pertencem à carne: A Bíblia ensina claramente que não há ninguém no mundo que não seja da carne, posto que todo pecador nasceu da carne.

Mas, além disso, reconhecemos que muitos, antes de nascer de novo, e inclusive muitos que em toda sua vida nunca acreditaram no Senhor, fizeram e continuam fazendo muitas coisas louváveis. Alguns parecem ter nascido com o dom da amabilidade, da paciência ou da bondade. Observem o que o Senhor diz a Nicodemos (Jo. 3:6); apesar desse homem ser bom por natureza, mesmo assim o considera da carne. Isto confirma que a carne pode deveras fazer o bem.

Na carta de Paulo aos Gálatas vemos outra vez que a carne pode fazer o bem.

«Havendo começado com o Espírito, estão terminando com a carne?» (3:3).

Os filhos de Deus na Galácia haviam caído no engano de fazer o bem com a carne. Tinham começado no Espírito Santo; porém não continuaram assim para serem feitos perfeitos. Em vez disso quiseram aperfeiçoar-se por meio de sua justiça, da justiça segundo a lei. Por isso o apóstolo lhes fez semelhante pergunta. Se a carne dos crentes gálatas só tivesse podido fazer o mal, Paulo não teria que fazer uma pergunta assim, posto que eles mesmos saberiam de sobra que os pecados da carne não podiam aperfeiçoar em modo algum o que se começou com o Espírito Santo. Que desejassem aperfeiçoar com sua carne o que o Espírito Santo havia iniciado mostra que para alcançar uma posição perfeita dependiam da capacidade de fazer o bem de sua carne. Realmente tinham tentado fazer o bem com grandes esforços, mas o apóstolo nos mostra aqui que as boas ações da carne e as obras do Espírito Santo são dois mundos distintos. O que uma pessoa faz com a carne o faz ela mesma.

Jamais se pode aperfeiçoar o que Espírito Santo começou No capítulo anterior pudemos encontrar o apóstolo dizendo outra coisa importante sobre o mesmo tema: «Mas se torno a edificar aquilo que derrubei, constituo-me a mim mesmo transgressor» (2:18). Assinalava aos que, tendo sido salvos e tendo recebido o Espírito Santo, ainda insistiam em conseguir a justiça segundo a lei (vs. 16,17,21) por meio de sua própria carne.

Fomos salvos por meio da fé no Senhor e não por meio de nossas obras: isto é ao que se referia Paulo com as «coisas derrubadas». Sabemos que sempre tinha lançado por terra as obras dos pecadores, considerando estas ações sem absolutamente nenhum valor na salvação de uma pessoa.

Se fazendo o bem tentamos «voltar a construir essas coisas» que tínhamos destruído, então, segundo Paulo, «demonstramos que somos transgressores». O apóstolo nos está dizendo que da mesma maneira que um pecador não pode salvar-se por seus próprios esforços, do mesmo modo os que fomos regenerados não podemos ser aperfeiçoados por meio de nenhuma boa ação de nossa carne. Que inúteis continuam sendo essas ações!

Romanos 8 sustenta que «os que estão na carne não podem agradar a Deus» (v. 8).

Isto implica que os carnais tentaram agradar a Deus, embora sem êxito. Certamente, isto se refere especificamente às boas ações da carne que fracassam por completo em agradar a Deus. Agora vamos conhecer, em profundidade, precisamente o que a carne pode fazer: é capaz de realizar boas ações, de fazê-las com competência. Freqüentemente concebemos a carne sob o aspecto de suas paixões e concupiscências, e por conseguinte a consideramos categoricamente poluída, sem ver que compreende mais que o aspecto das paixões. Mas as atividades das variadas faculdades da alma não têm por que ser tão poluídas como as paixões.

Além disso, a palavra «paixão», tal como às vezes é utilizada na Bíblia, não tem nenhum sentido de contaminação, como, por exemplo, na luta da carne (com paixão) contra o Espírito, e do Espírito contra a carne» em Gálatas 5:17. Vemos que o Espírito também tem paixão — contra a carne —. Neste exemplo, paixão simplesmente transmite a idéia de um desejo intenso.

Tudo o que uma pessoa é capaz de fazer antes da regeneração simplesmente é o resultado dos esforços da carne. Por isso pode fazer o bem, como também pode fazer o mal. O engano do crente reside precisamente aqui, em que só sabe que o mal da carne deve ser destruído, mas ignora que tem que acontecer o mesmo com o bem da carne. Desconhece que a virtude da carne é da carne tanto quanto a sua maldade. A carne permanece sendo carne, seja boa ou seja má. O que põe um cristão em perigo é sua ignorância ou sua rejeição em enfrentar a necessidade de desprender-se de tudo da carne, inclusive do que é bom. Deve reconhecer categoricamente que o bom da carne não é em nada melhor que o mau, posto que ambas as coisas pertencem à carne. Se não se enfrentar com a carne boa, um cristão não pode esperar ser livre do domínio da carne jamais. Porque se deixar que sua carne faça o bem, logo a encontrará obrando o mal. Se não destruir sua virtude, sem dúvida alguma teremos que nos enfrentar com sua maldade.

A natureza das boas obras da carne

Deus se opõe à carne energicamente porque conhece por completo sua condição autêntica.

Deseja que seus filhos se libertem por completo da velha criatura e experimentem plenamente a nova. Seja boa ou má, a carne ainda é carne. A diferença entre o bem que provém da carne e o bem que surge da nova vida é que a carne sempre tem o eu no centro. É o meu eu que pode fazer — e faz — o bem, sem necessidade de confiar no Espírito Santo, sem necessidade de ser humilde, de esperar em Deus, de orar a Deus. Posto que é o eu quem quer, penso e faço sem necessidade de Deus, e que, em conseqüência, considero o quanto melhorei, a altura a que cheguei com meu próprio esforço, então não é inevitável que eu me atribua a glória? É evidente que estes atos não levam as pessoas a Deus; em vez disso, enchem o eu. Deus quer que todos venham a Ele num espírito de absoluta dependência, totalmente submissos a seu Espírito Santo e esperando humildemente nele. Algo bom da carne que gire em torno do eu é uma abominação aos olhos de Deus, porque não procede do Espírito de vida do Senhor Jesus, mas sim do eu, e glorifica ao eu. O apóstolo afirma solenemente em sua carta aos Filipenses que ele «não põe sua confiança na carne» (3:3). A carne tende a ser confiante em si mesma.

Como são tão capazes, os carnais não precisam confiar no Espírito Santo. Cristo crucificado é a sabedoria de Deus, mas quanto um crente confia na sua própria sabedoria! Pode ler e pregar a Bíblia, pode escutar e acreditar a Palavra, mas faz tudo com o poder de sua mente, sem a mínima necessidade de depender totalmente da instrução do Espírito Santo.

Em conseqüência, muitos acreditam possuir toda a verdade, quando simplesmente conseguiram o que têm escutando outros ou estudando a Bíblia. O que é do homem ultrapassa em muito o que é de Deus. Não têm o coração aberto para receber sua instrução ou para esperar no Senhor, que Ele lhes revele sua verdade em sua luz.

Cristo crucificado também é o poder de Deus. Mas quanta confiança em si mesmo há no serviço cristão! realizam-se mais esforços em planejar e em preparar, do que em esperar no Senhor. Dedica-se o dobro de tempo a preparar a exposição e a conclusão de um sermão do que a receber o poder do alto. Mas todas estas obras são mortas aos olhos de Deus, não pelo fato de que não se proclame a verdade, ou que não se confesse a pessoa e a obra de Cristo, ou não se busque a glória de Deus, mas sim pela confiança na carne. Quanta ênfase colocamos na sabedoria humana e nos esforçamos por achar argumentos satisfatórios em nossas mensagens, e como procuramos ilustrações apropriadas e outros meios variados para comover, e empregamos sábias exortações para induzir os homens a que tomem decisões!

Mas onde estão os resultados práticos? Até que ponto confiamos no Espírito Santo e até que ponto confiamos na carne? Existe mesmo algum poder na velha criatura que possa capacitar as pessoas a herdar algo na nova criatura?

Como já dissemos, a segurança e a confiança em si mesmo são as brechas das boas obras da carne. Para a carne é impossível descansar em Deus. É muito impaciente para tolerar qualquer demora. Enquanto se considerar forte nunca confiará em Deus.Mesmo nos momentos de desespero, a carne continua fazendo planos e procurando uma saída. Nunca tem a sensação de dependência total. Isso pode ser uma indicação para o crente saber se uma obra é ou não é da carne. Tudo o que não for resultado de esperar em Deus, de confiar no Espírito Santo, é da carne sem dúvida alguma. Tudo o que uma pessoa decide segundo seu critério em lugar de procurar a vontade de Deus, surge da carne. Sempre que há ausência de uma confiança absoluta, isto é obra da carne. Agora entendam, as coisas que se façam podem não ser más ou equivocadas. De fato podem ser boas e piedosas (como ler a Bíblia, orar, adorar, pregar), mas se não são feitas num espírito de total confiança no Espírito Santo, então tudo é obra da carne. A velha criatura está disposta a fazer qualquer coisa — inclusive submeter-se a Deus — contanto que se lhe permita viver e permanecer ativa! Por muito boas que possam parecer as ações da carne, o «eu», oculto ou visível, sempre aparece no horizonte. A carne jamais admite sua debilidade nem reconhece sua inutilidade; inclusive embora se evidencie seu fracasso até o ridículo, a carne continua acreditando firmemente em sua capacidade.

«Tendo começado com o Espírito, terminarão com a carne?» Isto põe à vista uma grande verdade. Uma pessoa pode começar bem, no Espírito, e mesmo assim não continuar por esse caminho. Nossa experiência confirma o fato da relativa facilidade com que uma coisa pode começar no Espírito mas terminar na carne. Freqüentemente ocorre que o Espírito comunica uma verdade e que, apesar disso, em pouco tempo esta verdade se converte em uma jactância da carne. Os judeus cometeram este mesmo engano. Com que freqüência, quando se trata de obedecer ao Senhor, de negar de novo o eu, de receber poder para salvar almas, uma pessoa pode confiar seriamente no Espírito Santo no inicio, mas, em pouco tempo esta mesma pessoa converte a graça de Deus em sua própria glória, considerando o que é de Deus como se fosse dele.

Ocorre o mesmo com nossa conduta. Por meio da obra do Espírito Santo há, no princípio, uma poderosa transformação na vida de uma pessoa, que faz que ame o que antes odiava e que odeie o que antes amava. Entretanto, pouco a pouco o «eu» começa a introduzir-se sorrateiramente. A pessoa interpreta cada vez mais estas mudanças como êxitos próprios e chega a admirar-se; ou se torna indiferente e gradualmente atua segundo o eu em lugar de confiar no Espírito Santo. Há milhares de coisas na experiência do crente que começam bem, no Espírito, mas que desgraçadamente terminam na carne. Por que muitos filhos queridos de Deus procuram desejosos uma consagração absoluta e desejam impacientes mais vida abundante e apesar disso fracassam?

Freqüentemente, ao escutar as mensagens, ao conversar com pessoas, ao ler livros espirituais ou ao orar em privado, o Senhor lhes dá a conhecer que é perfeitamente possível ter uma vida de plenitude no Senhor. Os faz perceber a simplicidade e a beleza de uma vida semelhante e não vêem nenhum obstáculo em seu caminho que os impeça de consegui-la.

Verdadeiramente experimentam uma bênção, poder e glória como nunca antes. Oh, que maravilhoso! Mas ai! Logo se desvanece. Por que? Como? É devido a quê sua fé não é perfeita? Ou sua consagração não é absoluta? Por certo sua fé e sua consagração ao Senhor são plenas. Então, por que semelhante fracasso? Por que razão se perde a experiência e como se pode recuperar?

A resposta é simples e precisa. Confiam na carne e tentam aperfeiçoar por meio da carne o que começou no Espírito. Substituem o Espírito pelo eu. O eu deseja ir à frente e ao mesmo tempo espera que o Espírito esteja a seu lado para o ajudar. A posição e a obra do Espírito foram substituídas pelas da carne.

Há ausência de uma dependência total da direção do Espírito. Também há ausência de uma espera no Senhor.

Tentar segui-Lo sem negar o eu é a raiz de todos os fracassos.

Os pecados resultantes

Se um crente estiver tão seguro de si próprio que se atreve a completar a tarefa do Espírito Santo com a energia da carne, jamais alcançará uma maturidade espiritual completa. Em lugar disso chegará um momento em que os pecados que antes tinha superado voltarão a aparecer nele com força.

Não se surpreendam com o que estão lendo. É coisa bem conhecida que sempre e em qualquer lugar em que a carne sirva a Deus, ali e naquele momento o poder do pecado se reforça.

Por que os orgulhosos fariseus se fizeram escravos do pecado? Acaso não foi porque estavam muito convencidos de sua justiça e serviam a Deus com muito zelo?

Por que o apóstolo repreendeu os gálatas? Por que manifestavam as ações da carne? Não era porque desejavam estabelecer sua própria justiça pelas obras e para aperfeiçoar pela carne a obra que tinha começado o Espírito Santo?

O maior descuido que os cristãos cometem na vitória sobre o pecado se encontra no fato de não usar o meio adequado para prolongá-la. Em vez disso tentam perpetuar a vitória com suas obras, sua decisão e sua firmeza. Podem ter êxito momentaneamente. Entretanto, não passará muito tempo sem que vejam que voltam para seus pecados de antes, que possivelmente difiram na forma, mas não na essência. Então se afundam no abatimento, ao chegar à conclusão de que o triunfo persistente é impossível de alcançar, ou então tratam de ocultar seus pecados sem confessar sinceramente que pecaram.

E então, o que é que causa este fracasso?

Da mesma maneira que a carne lhes dá força para operar corretamente, também lhes dá o poder para pecar. Sejam bons ou maus, todos seus atos são expressões da mesma carne. Se não damos à carne oportunidade de pecar, ela está disposta a fazer o bem, e embora lhe dê oportunidade de fazer o bem, logo voltará a pecar.

Aqui Satanás engana os filhos de Deus. Se os crentes mantivessem normalmente a atitude de ter a carne crucificada, Satanás não teria nenhuma oportunidade, porque «a carne é o ateliê ou oficina de Satanás». Se toda a carne, não só uma parte, estiver realmente sob o poder da morte do Senhor, Satanás ficará totalmente sem trabalho. Por isso ele está disposto a permitir que levemos a parte pecaminosa de nossa carne à morte, se puder nos enganar para que retenhamos a parte boa. Satanás sabe perfeitamente que se a parte boa permanecer intacta, a vida da carne ficará preservada. Ainda terá uma cabeça de ponte com a qual prosseguirá sua campanha para recuperar o território que perdeu. Ele sabe muito bem que a carne pode vencer e recuperar sua vitória no reino do pecado se a carne conseguir excluir o Espírito Santo no que diz respeito ao serviço a Deus.

Isto explica porque muitos cristãos tornam a servir ao pecado depois de ter sido libertos.

Se o espírito não mantiver realmente um controle total e constante em questão de adoração, não poderá manter o domínio na vida diária. Se eu não me neguei por completo diante de Deus, não posso me negar diante dos homens, e por causa disto não posso vencer meu ódio, mau gênio e egoísmo. Estas duas coisas são inseparáveis.

Por causa de sua ignorância desta verdade, os crentes da Galácia chegaram a «morder-se e devorar-se uns aos outros» (Gl. 5:15). Tentaram aperfeiçoar pela carne o que tinha começado no Espírito Santo, porque desejavam «fazer um bom papel na carne», para «poder glorificar-se em sua carne» (6:12,13). Evidentemente, seus êxitos em conseguir fazer o bem com a carne eram muito escassos, enquanto que seus fracassos em vencer o mal eram numerosos. Não percebiam que, enquanto servissem a Deus com suas forças e suas idéias, indubitavelmente serviriam ao pecado na carne. Se não proibiam à carne que fizesse o bem, não podiam impedi-la de que fizesse o mal. A melhor maneira de não pecar é não fazer o bem com o eu. Ao desconhecer a absoluta corrupção da carne, os crentes gálatas, em sua necessidade, desejavam usá-la sem reconhecer que há a mesma corrupção na carne ao gabar-se de fazer o bem que ao seguir as más paixões. Não podiam fazer o que Deus queria que fizessem, porque por um lado tentavam realizar o que o Espírito Santo tinha começado, e pelo outro tentavam inutilmente livrar-se das paixões da carne.

5. A atitude definitiva do crente com a carne

A opinião de Deus sobre a carne

Nós, cristãos, necessitamos ser relembrados sobre o julgamento de Deus sobre a carne. O Senhor Jesus diz que «a carne não serve de nada» (Jo. 6:63). Tanto faz se for o pecado da carne ou a bondade da carne, tudo é vão. O que nasce da carne, seja o que seja, é carne e jamais pode ser «descarnada». Tanto faz se for a carne no púlpito, a carne no auditório, a carne nas orações, a carne na consagração, a carne na leitura da Bíblia, a carne no canto de hinos ou a carne na prática do bem, Deus afirma que nada disso serve. Por muito que os crentes possam trabalhar ardentemente na carne, aos olhos de Deus tudo é inútil; porque a carne nem beneficia à vida espiritual nem pode levar a cabo a justiça de Deus.

Vamos ressaltar umas quantas observações sobre a carne que o Senhor faz por meio do apóstolo Paulo na carta aos Romanos.

1) «Porque a inclinação da carne é morte» (8:6). Segundo Deus há morte espiritual na carne. A única saída é levar a carne à cruz. Apesar dela ter capacidade para fazer o bem ou planejar e maquinar para conseguir a aprovação dos homens, Deus pronunciou contra a carne simplesmente uma sentença: a morte.

2) «A inclinação da carne é inimizade contra Deus» (8:7). A carne se opõe a Deus. Não existe a mínima possibilidade de uma coexistência pacífica. Isto não só ocorre com os pecados que surgem da carne mas também com seus pensamentos e ações mais nobres. É óbvio que os pecados contaminantes são contrários a Deus, mas tenhamos presente que também se podem fazer boas ações independentemente de Deus.

3) «Não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser» (8:7). Quanto melhor trabalha a carne mais se afasta de Deus. Quantas pessoas «boas» estão dispostas a acreditar no Senhor Jesus? A justiça própria não é justiça absolutamente; em realidade é injustiça. Ninguém pode jamais obedecer todas as doutrinas da santa Bíblia. Uma pessoa pode ser tanto boa quanto má, mas uma coisa é certa: não se submete à lei de Deus. Se for má, infringe a lei; se for boa, estabelece outra justiça fora de Cristo e deste modo passa por cima do propósito da lei («pela lei vem o conhecimento do pecado» [3:20]).

4) «Os que estão na carne não podem agradar a Deus» (8:8). Este é o veredicto final. Apesar de quão bom um homem possa ser, se o que faz sai dele, não pode agradar a Deus. Deus só se compraz com seu Filho. Além dEle e de sua obra, ninguém pode agradar a Deus. O que se faz com a carne pode parecer perfeitamente bom, mas como vem do eu e se faz com a força natural não pode satisfazer a Deus. O homem pode planejar muitas formas de fazer o bem, de melhorar e de avançar, mas isso é carnal e não pode agradá-Lo. Isto ocorre não só com os não regenerados; também é o mesmo com os regenerados. Por muito louvável e efetivo que seja o que o crente faça com suas próprias forças, não conseguirá a aprovação de Deus. Agradar ou desagradar a Deus não depende do princípio do bom e do mau. Pelo contrário, Deus procura a origem de todas as coisas. Uma ação pode ser totalmente correta, mas entretanto Deus pergunta: «Qual é sua origem?»

Por essas referências bíblicas podemos começar a compreender o quanto são vãos e inúteis os esforços da carne. Um crente que veja claramente a avaliação de Deus nesta questão dificilmente tropeçará. Como seres humanos distinguimos entre boas obras e más obras. Deus vai mais além e faz uma distinção apoiada na origem de cada obra. A melhor das ações da carne desagrada a Deus tanto quanto a obra mais malvada, porque as duas são da carne. Do mesmo modo que Deus aborrece a injustiça, também aborrece a justiça própria. As boas ações que se fazem de um modo natural, sem regeneração ou união com Cristo ou dependência do Espírito Santo, não são menos carnais para Deus do que a imoralidade, a impureza, a libertinagem, etc. Por muito formosas que possam ser as atividades do homem, se não surgir de uma absoluta confiança no Espírito Santo, são carnais e, por conseguinte, Deus as rejeita. Deus odeia e rechaça tudo o que pertence à carne, sem ter em conta as aparências externas, tanto se tratando de um pecador como de um santo. Seu veredicto é: a carne deve morrer.

A experiência do crente

Mas como um crente pode ver o que Deus viu? Deus é inflexível com a carne e todas as suas atividades, mas parece que o crente que só rejeita seus aspectos maus e se mantém afetuosamente abraçado à própria carne. Não a rechaça categoricamente em sua totalidade; em vez disso continua fazendo muitas coisas na carne: toma uma atitude segura e orgulhosa como se estivesse cheio da graça de Deus e capacitado para atuar corretamente. Literalmente o crente se serve da carne. Por causa deste auto-engano, o Espírito de Deus deve levá-lo pelo caminho mais vergonhoso, para que conheça sua carne e alcance a perspectiva de Deus.

Deus permite que essa carne caia, se debilite, e inclusive peque, para que possa compreender se há ou não algo de bom na carne. Isso costuma ocorrer ao que pensa que está progredindo espiritualmente. O Senhor o põe à prova para que se conheça si mesmo. Freqüentemente o Senhor revela sua santidade de tal modo, que o crente não pode fazer mais que considerar contaminada sua carne. Às vezes, o Senhor consente que Satanás o ataque, para que, através do sofrimento, perceba sua condição. É uma lição extremamente difícil e que não se aprende da noite para o dia. Só depois de muitos anos, chega gradualmente a compreender o quão pouco confiável é sua carne. Há impureza inclusive no melhor de seus esforços. Em conseqüência, Deus o deixa experimentar Romanos 7 até que esteja disposto a reconhecer, como Paulo: «Porque eu sei que em mim, isto é, em minha carne, não habita bem algum» (v. 18). Como é difícil aprender a dizer isto de modo genuíno! Se não fosse pelas inumeráveis experiências de derrota penosa, o crente continuaria confiando em si mesmo e considerando-se capaz. As centenas e milhares de derrotas o levam a admitir que é impossível confiar na justiça própria e considerar-se a si mesmo capaz. Esse tratamento enérgico, no entanto, não termina aqui. O auto-exame deve continuar. Porque quando um cristão cessa de julgar-se a si mesmo e falha em tratar a carne como extremamente inútil e detestável, mas assume, em vez disso, uma atitude levemente vã e aduladora para si mesmo, então Deus se vê obrigado a fazê-lo passar pelo fogo, a fim de consumir a escória. Poucos são os que se humilham e reconhecem sua imundície! A menos que alguém se dê conta deste estado, Deus não vai retirar seus toques de atenção. Como o crente não pode livrar-se da influência da carne nem um momento, nunca deveria deixar de exercitar o coração a julgar a si mesmo; de outra maneira logo vai recomeçar nas jactâncias da carne.

Muitos supõem que só as pessoas do mundo precisam ser convencidas do pecado pelo Espírito Santo, pensando assim: Pois o Espírito Santo já não me convenceu de meus pecados para que eu cresse no Senhor Jesus?

Mas os cristãos devem saber que uma operação como essa do Espírito Santo é tão importante nos santos como nos pecadores. Por necessidade, o Espírito deve convencer os santos de seus pecados, não somente uma vez ou duas, mas sim a cada dia e incessantemente. Oxalá experimentássemos mais e mais a convicção do pecado produzida pelo Espírito Santo, para que nossa carne pudesse ser posta sob julgamento de modo incessante e nunca lhe permitíssemos reinar! Que não percamos, nem mesmo por um momento, a idéia verdadeira do que é nossa carne e da avaliação que Deus faz dela. Que nunca acreditemos em nós mesmos, e nunca mais confiemos em nossa carne, sabendo que isso jamais pode agradar a Deus.

Confiemos sempre no Espírito Santo, e em nenhum momento cedamos o nem um mínimo espaço ao eu.

Se jamais houve no mundo alguém que pudesse se gabar de sua carne, esta pessoa tinha que ser Paulo, porque quanto à justiça que é da lei era irrepreensível. E se alguém podia se gabar de sua carne depois da regeneração, certamente tinha que ser também Paulo, porque tinha passado a ser um apóstolo, havia visto com seus próprios olhos ao Senhor ressuscitado, e era usado grandemente pelo Senhor. Mas sua experiência de Romanos 7 o capacitara a compreender plenamente quem é. Deus abriu seus olhos para que visse, pela experiência, que em sua carne não habitava o bem, só o pecado. A justiça própria de que se tinha orgulhado no passado, soube que é só lixo e pecado. Aprendeu esta lição, e a aprendeu bem; daí que não se atreveu a confiar mais na carne. Mas Paulo não parou aí, de modo algum. Não. Paulo continuou aprendendo. E, assim, o apóstolo declara que não «confiamos na carne. Se bem que eu poderia até confiar na carne. Se algum outro julga poder confiar na carne, ainda mais eu.» (Fp. 3:3,4). Apesar das muitas razões que pôde enumerar para confiar em sua carne (vs. 5,6), Paulo se dá conta de como Deus a vê e entende muito bem que é indigna de confiança e que não pode confiar-se nela absolutamente. Se seguimos lendo Filipenses 3 descobriremos o quanto Paulo é humilde em relação a confiar em si mesmo. «Não tendo minha própria justiça» (v. 9); « para ver se de algum modo posso chegar à ressurreição dentre os mortos. » (v. 11); « N , ou que seja perfeito; mas vou prosseguindo, para ver se poderei alcançar aquilo para o que fui também alcançado por Cristo Jesus » (v. 12).

Se um crente aspirar alcançar a maturidade espiritual, deve preservar sempre esta atitude que o apóstolo Paulo apresenta ao longo do caminho espiritual; ou seja: «não que já a tenha alcançado». O cristão não deve atrever-se a ter a menor confiança em si mesmo, satisfação e gozo em si mesmo, pensando que pode confiar em sua carne.

Se os filhos de Deus se esforçarem sinceramente em alcançar a vida mais abundante e estiverem dispostos a aceitar a avaliação que faz Deus da carne, não terão a si mesmos em maior estima que aos demais, por maior que seja seu progresso espiritual. Não vão dizer palavras como: «Naturalmente, eu sou diferente dos outros.» Se esses crentes estiverem dispostos a permitir que o Espírito Santo lhes revele a santidade de Deus, e não temerem que claramente lhes exponha sua corrupção, então chegarão a perceber, pelo Espírito, sua corrupção de um tempo prévio, possivelmente com uma diminuição posterior nas experiências penosas de derrota.

Entretanto, quão lamentável é que, mesmo quando a intenção da pessoa seja de não confiar na carne, apareça por baixo da superfície alguma pequena impureza porque essa pessoa ainda crê que tem alguma força. Em vista disto, Deus tem que lhe permitir encontrar-se em várias derrotas, a fim de eliminar até a mais leve confiança em si mesmo.

A cruz e a obra mais profunda do Espírito Santo

Como a carne é grosseiramente enganosa, o crente requer a cruz e o Espírito Santo. Uma vez que tenha discernido o que Deus pensa da carne, deve experimentar a cada momento a obra mais profunda da cruz por meio do Espírito Santo. Tal como um cristão deve ser libertado do pecado da carne por meio da cruz, também deve agora ser liberto da justiça da carne por meio da mesma cruz. E tal como andando no Espírito Santo o cristão não vai seguir a carne para o pecado, assim também andando no Espírito Santo não vai seguir a carne para a justiça própria.

Como um fato que se encontra fora do crente, a cruz foi consumada de modo perfeito e completo; aprofundar o assunto aqui é impossível. Mas, como um processo dentro do crente, a cruz é cada vez experimentada de forma mais profunda; o Espírito Santo vai ensinar e aplicar o princípio da cruz em um ponto atrás do outro. Se a gente for fiel e obediente vai ser guiado continuamente a experiências mais profundas do que a cruz realizou já nele. A cruz, objetivamente, é um fato absoluto, ao qual não se pode acrescentar nada; mas subjetivamente é uma experiência progressiva e sem fim que pode ser realizada de uma forma cada vez mais penetrante.

O leitor, a estas alturas, deveria conhecer algo mais do caráter completamente abrangente do fato de ter sido crucificado com o Senhor Jesus na cruz; porque só sobre esta base o Espírito Santo pode atuar. O Espírito não tem outro instrumento para atuar do que a cruz. O crente deve agora já ter uma nova compreensão de Gálatas 5:24. Não se trata só de «suas paixões e desejos» que foram crucificados; a própria carne, incluindo toda sua justiça assim como seu poder de operar justamente, foi crucificada na cruz. A cruz é o lugar em que as paixões e os desejos — e a mola que ativa estas paixões e desejos — são crucificados, por admiráveis que possam parecer. Só no caso que alguém ver isso e estar disposto a negar toda sua carne, boa ou má, pode, de fato, andar conforme o Espírito Santo, agradar a Deus e viver uma vida espiritual genuína. Esse "estar disposto" não deve faltar, por sua parte, porque embora a cruz, como um fato consumado, seja completa em si mesma, sua realização na vida de uma pessoa é medida pelo conhecimento, pela preparação e pela fé da mesma.

Suponhamos que o filho de Deus recuse renegar o que houver bom de sua carne.

Qual será sua experiência? Sua carne pode parecer extremamente sábia e poderosa em numerosas atividades e empreendimentos. Mas, por boa e forte que seja, a carne não pode responder nunca às demandas de Deus. Daí que quando Deus o chama realmente a preparar-se para ir ao Calvário e sofrer, o cristão logo descobre que sua única resposta é retrair-se e ficar mais fraco que a água. Por que os discípulos falharam de modo tão lamentável no Jardim do Getsêmani? Porque «o espírito na verdade estava pronto, mas a carne era fraca» (Mt. 26:41). A fraqueza aqui causa falhas ali. Aparentemente, a carne só pode desdobrar seu grande poder, em questões que se adaptam a seus gostos. Por esta razão, a carne se retrai diante da chamada de Deus. Sua morte, pois, é essencial, de outro modo nunca se poderá fazer a vontade de Deus.

Tudo o que fazemos tem por intenção a ostentação própria, com o objetivo de ser visto e admirado por outros que pertencem à carne. Há bem natural assim como mal natural nesta carne.

João 1:13 nos informa da «vontade» da carne. A carne pode querer e decidir e fazer planos para executar atos bons a fim de receber o favor de Deus. Mas ainda pertence à carne humana e por isso deve ir à cruz.

Colossenses 2:18 fala da «mentalidade» de sua carne. A confiança de um cristão em si mesmo não é nada mais que confiar em sua sabedoria, pensando que conhece cada um dos ensinamentos das Escrituras e como servir a Deus.

E 2 Coríntios 1:12 menciona a «sabedoria» da carne. É altamente perigoso aceitar as verdades da Bíblia com sabedoria humana, porque este é um método escondido e sutil que invariavelmente faz que o crente aperfeiçoe com sua carne a obra do Espírito Santo. Uma verdade preciosa pode ser entesourada de modo seguro na memória; no entanto, é meramente na mente da carne! Só o Espírito pode vivificar; a carne não aproveita nada. A menos que todas as verdades sejam vivificadas continuamente pelo Senhor, não produzem benefício nem para nós nem para outros. Não estamos discutindo o pecado aqui, mas sim a conseqüência inevitável da vida natural no homem. Tudo o que é natural não é espiritual. Não só temos que negar nossa justiça mas também nossa sabedoria. Esta deve ser cravada na cruz também.

Colossenses 2:23 nos fala de uma «devoção» ou reputação de sabedoria da carne. Isto é «adoração» ou «culto», na nossa opinião. Cada método que imaginamos para estimular, procurar ou adquirir um sentido de devoção é culto na carne. Não é nem adoração segundo o ensino das Escrituras, nem adoração sob a direção do Espírito Santo. Daí que existe sempre a possibilidade de andar pela carne; tanto na questão da adoração, como na obra cristã, ou no conhecimento da Bíblia, ou no salvar almas.

A Bíblia menciona com freqüência a «vida» da carne. A menos que seja rendida à cruz, vive tanto dentro do santo como do pecador. A única diferença é que no santo há oposição espiritual a ela. Mas fica para ele a possibilidade de pegar essa vida e tirar recursos, fazer uso dela. A vida da carne pode ajudar a servir a Deus, a meditar sobre a verdade, a consagrar-se ao Senhor. Pode motivar a executar muitos atos bons. Sim, o cristão pode tomar sua vida natural como verdadeira vida, de tal maneira que lhe dá a impressão de que está servindo a vontade de Deus.

Temos que entender que dentro do homem há dois princípios de vida diferentes. São muitos os que vivem uma vida mista, obedecendo a um destes preceitos agora, e depois ao outro. Algumas vezes dependemos totalmente da energia do Espírito; em outras ocasiões misturamos nossa própria força. Não há nada que pareça estável e firme. «Faço-o segundo a carne, para que haja comigo o sim, sim e o não?» (2Co. 1:17). Uma característica da carne é sua volubilidade: alterna entre o Sim e o Não, e vice-versa. Mas a vontade de Deus é: «que não andemos segundo a carne, mas segundo o Espírito» (Rm. 8:4).

«Nele também fostes circuncidados com a circuncisão não feita por mãos no despojar do corpo da carne, a saber, a circuncisão de Cristo» (Cl. 2:11). Deveríamos estar dispostos a permitir à cruz que, como uma faca na circuncisão, cortasse completamente tudo o que pertence à carne. Uma incisão assim deve ser profunda e cortante de modo que não fique nada da carne escondido ou à vista. A cruz e a maldição são inseparáveis (Gl. 3:13). Quando consignamos nossa carne à cruz a entregamos a maldição, reconhecendo que na carne não há nada bom e que não merece nada a não ser a maldição de Deus. Sem esta atitude no coração é extremamente difícil que nós aceitemos a circuncisão da carne. Todo afeto, desejo, pensamento, conhecimento, intenção, adoração e obra da carne deve ir para a cruz.

Ser crucificado com Cristo significa aceitar a maldição que nosso Senhor aceitou. Não foi um momento glorioso para Cristo ser crucificado no Calvário (At. 12:2). Seu corpo foi pendurado no madeiro, o que significava ser maldito de Deus (Dt. 21:23). Como conseqüência, que a carne seja crucificada com o Senhor implica simplesmente ser maldito pelo Senhor. Tal como temos que receber a obra consumada de Cristo na cruz, assim também temos que entrar na comunhão da cruz. O crente deve reconhecer que sua carne não merece outra coisa senão a maldição da morte. Sua comunhão prática com a cruz começa depois que vê a carne tal como Deus a vê. Antes que o Espírito Santo possa encher plenamente uma pessoa, tem que haver uma entrega completa da carne à cruz. Oremos para que possamos saber exatamente o que é carne e como tem que ser crucificada.

Irmãos, não somos bastante humildes para aceitar de boa vontade a cruz de Cristo! Resistimos em admitir que somos impotentes, inúteis e totalmente corruptos até o ponto que não merecemos nada a não ser a morte. O que falta hoje não é viver melhor, mas sim morrer melhor! Temos que morrer uma boa morte, uma morte consciente.

Falamos bastante sobre a vida, o poder, a santidade, a justiça; falemos agora sobre a morte!

Oh, que o Espírito Santo penetre em nossa carne profundamente pela cruz de Cristo, para que possa chegar a ser uma experiência válida em nossa vida!

Se morrermos corretamente, viveremos corretamente. Se estivermos unidos com Ele em sua morte, certamente estaremos unidos com Ele em sua ressurreição. Peçamos ao Senhor que abra nossos olhos para que possamos ver o imperativo absoluto da morte. Está preparado para isto? Está disposto a permitir que o Senhor mostre suas fraquezas? Está disposto a ser crucificado abertamente fora da porta? Vai deixar que o Espírito da cruz atue dentro de você?

Oh, que saibamos mais de sua morte!

Que possamos morrer por completo!

Deveríamos ter bem clara a idéia de que a morte da cruz é contínua em sua operação. Não podemos entrar nunca em um estágio de ressurreição que deixe a morte totalmente de fora, porque a experiência da ressurreição se mede pela experiência da morte. Um perigo que há entre os que perseguem a vida de ascensão é que se esquecem da necessidade categórica de reduzir continuamente a carne a nada. Abandonam a posição da morte e avançam a de ressurreição. Isto tem como resultado, ou tratar levianamente as obras da carne, como se não houvesse um risco sério para o crescimento espiritual, ou espiritualizá-las, isto é, assumir que as coisas da carne são do espírito.

É essencial que vejamos que a morte é o fundamento de tudo! O reino chamado ressuscitado e ascendido será irreal se não se mantiver continuamente a morte da carne. Não nos enganemos pensando que somos tão avançados espiritualmente que a carne já não tem poder para nos seduzir. Essa é tão somente a intenção do inimigo de nos apartar da base da cruz com o objetivo de nos fazer carnais interiormente e espirituais por fora. Muitas orações do tipo de «Te dou graças, Senhor, porque já não sou isto ou aquilo, mas isto outro agora», são simplesmente ecos da oração inaceitável que se registra em Lucas 18:11,12. Somos suscetíveis ao engano por parte da carne quando estamos a ponto de sermos tirados dela. Temos que permanecer constantemente na morte do Senhor.

Nossa segurança se acha no Espírito Santo. O caminho seguro está em nossa boa disposição para sermos ensinados, temerosos de que do contrário cedamos terreno à carne. Temos que nos submeter alegremente a Cristo e confiar no Espírito Santo para que nos aplique a morte de Jesus, para que possa ser ostentada em nós a vida de Jesus. Tal como antes estávamos cheios da carne, agora seremos cheios do Espírito Santo. Quando Ele tenha controle completo, vamos derrotar o poder da carne e manifestar Cristo em nossa vida. Poderemos então dizer que «a vida que agora vivo na carne, não a vivo eu, mas Cristo que vive em mim». Entretanto, o fundamento dessa vida é e foi sempre o «fui crucificado com Cristo» (Gl. 2:20).Se vivermos por fé e obediência podemos esperar que o Espírito faça uma obra extremamente Santa e maravilhosa em nós.

«Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito.» (Gl. 5:25).

Deveríamos simples e descansadamente acreditar que nosso Senhor nos deu seu Espírito e que agora habita em nós.

Creiamos em seu dom e confiemos que o Espírito Santo habita em nós. Tenhamos isto como o segredo da vida de Cristo em nós: seu Espírito reside no mais profundo de nosso espírito.

Meditemos nisso, creiamos nisso, e recordemo-lo até que esta verdade gloriosa produza em nós um temor e assombro santos de que o Espírito Santo habita realmente em nós!

Agora aprendamos a seguir sua direção. Esta direção não surge da mente ou dos pensamentos; é algo da vida. Temos que ceder diante de Deus e deixar que seu

Espírito governe tudo. Ele vai manifestar o Senhor Jesus em nossa vida, porque esta é sua missão e tarefa.

Palavras de exortação

Se permitirmos ao Espírito de Deus que faça uma obra mais profunda por meio da cruz, nossa circuncisão vai ser cada vez mais real.

«Porque a circuncisão somos nós, que servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e não confiamos na carne.» (Fp. 3:3).

Essa confiança na carne foi abandonada por meio da circuncisão executada não por mãos. O apóstolo faz do glorificar-se em Cristo Jesus o centro de tudo. Explica-nos que há perigo por um lado, mas segurança por outro. Pôr a confiança na carne tende a destruir o glorificar-se em Cristo Jesus, mas o adorar em espírito nos dá o gozo bem-aventurado da vida e a verdade. O Espírito Santo eleva ao Senhor Jesus, mas humilha a carne. Se de modo genuíno desejamos nos glorificar em Cristo e lhe permitir que assegure sua glória em nós, temos que receber a circuncisão da cruz e aprender a adorar no Espírito Santo. Não sejamos impacientes, porque a impaciência é da carne.

Não experimentem métodos diferentes, porque só são úteis para ajudar a carne. Temos que desconfiar da carne inteiramente, por boa e capaz que seja. Temos que confiar, em troca, no Espírito Santo e nos submetermos somente a Ele. Com esse tipo de confiança e obediência, a carne será conservada em humildade em seu próprio lugar de maldição e, em conseqüência, perderá todo seu poder. Que Deus seja misericordioso conosco para que não coloquemos nossa confiança na carne; sim, que possamos olhar para nós mesmos e reconhecer quão pouco digna de confiança e quão inútil e estéril é nossa carne. Esta é uma morte muito real. Sem ela não pode haver vida.

«Não usem a liberdade como pretexto para a carne» (Gl. 5:13).

Obtivemos liberdade no Senhor; não devemos dar, pois, nenhuma oportunidade à carne, porque seu lugar apropriado é a morte. Não concebamos de modo inconsciente a atividade do Espírito Santo como se fosse a nossa própria, mas sim estejamos sempre em guarda para que a carne não possa reviver. Não usurpemos a glória de um triunfo e com isso proporcionemos à carne uma oportunidade para voltar a empreender suas operações. Não nos tornemos confiantes demais por causa de nossas poucas vitórias; se o fizermos, nossa queda será maior. Quando tiver aprendido a vencer a carne e esta já tenha perdido seu poder, não imagine nunca que a partir de então já tem o triunfo definitivo sobre ela. Se não depender do Espírito Santo, logo vai estar uma vez mais envolvido em experiências penosas. Com santa diligencia deve cultivar uma atitude de dependência, pois de outro modo vai ser o alvo dos ataques da carne. Quanto menos orgulho ostente, menos oportunidades terá a carne. O apóstolo, imediatamente depois de dar seu ensinamento sobre a crucificação da carne e o andar no Espírito, diz: «Não nos tornemos vangloriosos» (Gl. 5:26). Se reconhecer humildemente quão inútil é diante de Deus, não vai tentar se envaidecer diante dos homens.

Suponhamos que dissimule a fraqueza de sua carne diante dos homens a fim de receber glória. Não estará, sem se aperceber, dando ocasião à carne para sua atividade? O Espírito Santo pode nos ajudar e nos fortalecer, mas Ele mesmo não vai nos substituir na realização daquilo que é nossa responsabilidade. Portanto, para cumprir esta responsabilidade, nós, por um lado, temos que manter uma atitude que não dê ocasião alguma à carne; mas por outro lado temos que pôr essa atitude realmente em prática quando sejamos chamados a negar a carne em todas as realidades de nosso afazer diário.

«Não tenhais cuidado da carne em suas concupiscências», admoesta Paulo (Rm. 13:14). Para que a carne possa operar, necessita uma oportunidade ou ocasião. É por isso que não devemos proporcionar-lhe essa oportunidade Se a carne tiver que ser mantida no lugar de maldição, temos que estar sempre alerta. Temos que examinar nossos pensamentos continuamente para ver se albergarmos presunção ou não, porque, certamente, uma atitude assim dará uma grande oportunidade à carne. Nossos pensamentos são muito importantes aqui, porque o que acontece no segredo de nossa vida intelectual vai irromper ao exterior abertamente em palavras e feitos. A carne não deve ter nenhuma oportunidade nem base.

Inclusive quando conversamos com outros, temos que estar atentos para que nas muitas palavras a carne não ache oportunidade para executar sua obra. É possível que nós gostemos de dizer muitas coisas, mas se estas coisas não são enviadas pelo Espírito Santo é melhor não dizê-las. O mesmo se aplica a nossos atos. A carne pode elaborar muitos planos e métodos e estar cheia de expectativas. Tem opiniões, poder e habilidade. Aos outros, e inclusive a nós mesmos, todas elas podem aparecer como dignas de elogio e aceitáveis. Mas sejamos bastante ousados para as destruir, inclusive as melhores delas, por temor de infringir o mandamento do Senhor. O melhor que a carne tem para oferecer deve ser entregue de modo inexorável à morte, pela simples razão de que pertence à carne. A justiça da carne é tão aborrecível como o pecado. Seus atos bons deveriam ser objeto de arrependimento por nossa parte com a mesma humildade que se fossem atos pecaminosos. Sempre temos que ter em conta o ponto de vista que tem Deus da carne.

Em caso de falharmos, temos que nos auto-examinar.


Watchman Nee

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“Todo-Poderoso , aquele que era , que é, e que há de vir.”
“Ora, vem, Senhor Jesus!”

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