Trabalhadores na Vinha

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010


Depressão Espiritual
Capítulo IX
Trabalhadores na Vinha

"Porque o reino dos céus é semelhante a um homem, pai de famí­lia, que saiu de madrugada a assalariar trabalhadores para a sua vinha. E, ajustando com os trabalhadores a um dinheiro por dia, mandou-os para a sua vinha. E, saindo perto da hora terceira, viu outros que estavam ociosos na praça. E disse-lhes: Ide vós também para a vinha, e dar-vos-ei o que for justo. E eles foram. Saindo outra vez perto da hora sexta e nona, fez o mesmo. E, saindo perto da hora undécima, encontrou outros que estavam ociosos, e perguntou-lhes: Por que estais ociosos todo o dia? Dis­seram-lhe eles: Porque ninguém nos assalariou. Diz-lhes ele: Ide vós também para a vinha, e recebereis o que for justo. E, aproxi­mando-se a noite, diz o senhor da vinha ao seu mordomo: Chama os trabalhadores, e paga-lhes o jornal, começando pelos derra­deiros até os primeiros. E, chegando os que tinham ido perto da hora undécima, receberam um dinheiro cada um; vindo, porém, os primeiros, cuidaram que haviam de receber mais; mas do mes­mo modo receberam um dinheiro cada um. E, recebendo-o, mur­muravam contra o pai de família, dizendo: Estes derradeiros traba­lharam só uma hora, e tu os igualaste conosco, que suportamos a fadiga e o calor do dia. Mas ele, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço agravo; não ajustaste tu comigo um dinheiro? Toma o que ê teu , e retira-te; eu quero dar a este derradeiro tanto como a ti. Ou não me é lícito fazer o que quiser do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou bom? Assim os derradeiros serão primeiros, e os primeiros derradeiros; porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos". Mateus 20:1-16

Quero chamar sua atenção para o ensino especial contido nesta parábola, como parte de nossa consideração do assunto da depressão espiritual, ou, se preferirem, o assunto da infelicidade na vida do cristão — o cristão miserável. Acho que chegamos a um ponto crítico. Até agora, estivemos considerando dificuldades que eu colocaria na categoria de dificuldades preliminares, aquelas pedras de tropeço iniciais — dificuldades que surgem como resul­tado de falta de clareza com respeito ao ingresso na fé e na vida cristã.
Agora precisamos dar um passo à frente. Não tratamos, de forma alguma, de todas as dificuldades preliminares, e nossa expo­sição do assunto não foi exaustiva nesse sentido; mas tentamos salientar as causas mais importantes de tropeços e dificuldades e de infelicidade. O tipo, ou grupo de dificuldades que vamos con­siderar agora são as que surgem depois desse estágio preliminar. Estas dificuldades, é claro, podem surgir em qualquer ponto, mas constituem um tipo de grupo à parte.
Ao considerá-las, precisamos nos lembrar mais uma vez que as Escrituras deixam muito claro que não há parte desta vida cristã que não tenha os seus perigos. Nada é tão falso em relação aos ensinamentos do Novo Testamento, como dar a impressão que no momento que alguém crê e é convertido, todas as suas dificuldades vão acabar, e nunca mais terá qualquer problema. Infelizmente isso não é verdade, porque temos um inimigo, o adversário das nossas almas. Mas não só precisamos contender com o inimigo — temos também a nossa velha natureza dentro de nós, e esses dois juntos garantem que teremos problemas e dificulda­des; e é nosso dever entender os ensinamentos das Escrituras a respeito deles, para que não sejamos apanhados pelos seus enganos e sutilezas. O inimigo nos segue como seguiu o Senhor, o tempo todo. Quando ele tentou e provou o Senhor no deserto por qua­renta dias, lemos que no fim ele O deixou apenas "por algum tempo". Ele não O deixou permanentemente; voltou vez após vez, e O seguiu o caminho todo. Observemos suas atividades no Getse­mâni, quando o fim se aproximava; na verdade, ele ainda estava atacando quando nosso bendito Senhor morria na cruz. Ora, dizer isso não é ser deprimente — é ser realista, e ser realista sempre é encorajador. Não há nada pior ou mais repreensível do que entorpecer as pessoas com algum tipo de soporífero, e então per­mitir que acordem subitamente para enfrentar dificuldades para as quais não estão preparadas. É nosso dever estar preparados para estas coisas à luz das Escrituras: "Estar prevenido é estar armado de antemão", e temos diante de nós, sempre, aquela pode­rosa passagem que diz: "Revestí-vos de toda a armadura de Deus". Estamos simplesmente tentando, nestes estudos, colocar as dife­rentes peças desta poderosa armadura que Deus proveu para nós.
O ponto que quero enfatizar agora, portanto, é que, se por um lado é vital e importante começar de forma correta, por outro lado isso não é suficiente. Devemos continuar da mesma forma, pois se não fizermos isso, logo nos acharemos numa situação infeliz. Em outras palavras, estou apresentando a proposição de que, embo­ra não tenhamos qualquer dúvida sobre as coisas que foram con­sideradas até aqui — mesmo que o evangelho nos tenha sido apresentado e tenhamos nos convertido e ingressado na vida cristã; ainda que tenhamos acatado as advertências sobre as dificuldades iniciais — se não continuarmos, se não mantivermos nosso curso na mesma direção, logo cairemos em dificuldades. Há uma grande ilustração disso no Evangelho de João, capítulo 8, começando no versículo 30. Nosso Senhor estava pregando uma tarde sobre o relacionamento entre Ele e o Pai, e lemos que: "Dizendo ele estas coisas, muitos creram nele". Então o Senhor olhou para eles e disse: "Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade e a verdade Vos libertará". Eles pareciam estar começando bem, mas tinham que continuar se quisessem ser verdadeiramente livres. É exatamente o mesmo com algumas das pessoas retratadas na parábola do semeador. Havia aqueles que receberam a verdade com grande alegria, mas isso não durou. Em outras palavras, a importância de continuar é um princípio vital, e é isso que quero considerar agora à luz desta parábola.
Ao examinar esta parábola, é muito importante que o faça­mos de maneira correta, e a compreendamos verdadeiramente. Pode-se dizer, com reverência, que esta é uma parábola muito perigosa, se não for interpretada corretamente. Há muitos que se agarram a algo nela, justamente à "undécima hora". Pensam: "Não preciso me preocupar com minha salvação agora; vou fazer isso na hora undécima, como as pessoas que foram trabalhar na vinha na undécima hora e receberam o mesmo que aquelas que começaram cedo de manhã". Não há erro mais fatal do que este. Como disse o bispo Ryle a respeito do ladrão na cruz: "Poucos são salvos no seu leito de morte. Um ladrão na cruz foi salvo, para que ninguém se desespere; mas somente um, para que nin­guém presuma". Outra coisa perigosa é tornar a parábola numa alegoria, tomando cada detalhe no ensino, e ligando a ele uma verdade espiritual. Isso já foi feito muitas vezes, porém foi devido ao fato de esquecermos que é uma parábola, e o ponto a lembrar sobre uma parábola é que ela em geral tem o propósito de ilustrar uma verdade somente. É por isso que, por exemplo, no capítulo 13 do Evangelho segundo Mateus, vemos que o Senhor proferiu uma série de parábolas sobre o reino dos céus. Não podemos ver tudo numa só. Uma mostra um aspecto, e outra revela outro; todas se complementam e cada uma tem o propósito de comunicar um aspecto da verdade somente. Precisamos ser muito cuidadosos, portanto, para não tornar os detalhes em algum tipo de represen­tação alegórica da verdade.
Esta parábola, portanto, como todas as outras parábolas, tem o propósito de ensinar uma verdade. Qual é ela? A resposta, por certo, pode ser encontrada na palavra "porque" — "porque o reino dos céus. . ." É uma pena que, quando as Escrituras foram divididas em capítulos, fizeram uma divisão neste ponto. Obvia­mente o tema é uma continuação do que temos no fim do capí­tulo 19, e o que encontramos ali é o incidente do jovem rico, como é chamado, e os comentários do Senhor a respeito daquele jovem que se retirou triste. Lembram-se do que Pedro disse a Ele? "Eis que nós deixamos tudo, e te seguimos; que receberemos?" Foi por causa disso que o Senhor proferiu esta parábola. Pedro fez uma pergunta. Na verdade, ele estava dizendo: "Senhor, nós deixamos tudo, nós Te seguimos, nós abrimos mão de todas as coisas; o, que vais nos dar?" Nosso Senhor respondeu sua pergunta dizendo:'"Em verdade vos digo que vós, que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis sobre doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel. E todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou terras, por amor do meu nome, receberá cem vezes tanto, e herdará a vida eterna. Porém muitos primeiros serão os derradeiros, e muitos derradeiros serão os primeiros. "Porque" o reino dos céus é seme­lhante. . ." etc. Em outras palavras, a mensagem desta parábola é endereçada a Pedro por causa da reivindicação que ele fez. O Senhor ouviu a pergunta de Pedro, e a respondeu, mas Ele obviamente percebeu uma nota falsa e errada naquela pergunta; então, foi para repreendê-lo, reprová-lo e adverti-lo seriamente que o Senhor proferiu esta parábola. Para mim isso está provado con­clusivamente pela forma como Ele repete a declaração sobre "muitos primeiros serão os derradeiros, e muitos derradeiros serão os primeiros". Vemos isso no começo, e o vemos novamente no fim.
Aqui, então, está o princípio em que devemos nos concentrar. Qual é? Qual é a doutrina? É que na vida cristã tudo é pela graça, do começo ao fim. Essa é a mensagem, essa é a doutrina, esse é o princípio. Já examinamos resumidamente o ensino desta parábola num capítulo anterior, mas estávamos preocupados então com um ponto específico, isto é, que por causa deste grande prin­cípio da graça, aqueles que entram no fim são iguais àqueles que entraram no começo. Estávamos tratando do desânimo que muitas vezes assalta pessoas convertidas numa idade avançada. Vimos que nunca é tarde demais, que a salvação não é apenas para os jovens, e sim para todos. Às vezes um homem que é convertido tarde na vida é tentado pelo diabo nesta área porque aceitou a salvação tão tarde, e por causa dos anos que desperdiçou. Para uma pessoa assim, é um grande consolo que o Senhor chamou aqueles homens e os mandou trabalhar na hora undécima. Examinamos a parábola desse ponto de vista, mas neste capítulo nossa ênfase será sobre aqueles que entraram no começo. Não há qualquer dúvida que o objetivo da parábola é dirigir a estas pessoas uma advertência solene e séria.
A situação destas pessoas é que elas começaram de forma correta, mas tiveram problemas depois. Quão frequente isso acon­tece! É por isso que o Novo Testamento trata dessa questão com tanta frequência, em declarações como: "Corríeis bem; quem vos impediu, para que não obedeçais à verdade?" Num certo sentido, todas as epístolas do Novo Testamento foram escritas justamente para ajudar esse tipo de pessoa. Aqueles cristãos primitivos tinham crido e se ligaram à Igreja, mas caíram em depressão, e as epísto­las foram escritas para ajudá-los. É uma coisa que nos ameaça constantemente, e é um perigo que tende a nos perseguir por toda a nossa vida cristã. Não é suficiente começar corretamente — pre­cisamos continuar da mesma forma. Vou tratar aqui de várias ilustrações disso. O perigo para muitos tem sido o de voltar à escravidão, e é um perigo muito real na presente época por causa das seitas que têm surgido em toda parte. Pessoas que conheceram a gloriosa liberdade dos filhos de Deus às vezes caem novamente em escravidão e se tornam infelizes e miseráveis. Vamos então examinar isso segundo é apresentado nesta parábola.
Antes de tudo, vamos analisar a causa do problema. Por que esses homens, que foram enviados à vinha cedo de manhã, agiram de forma tão deplorável no final? Ali estão eles, descontentes, murmurando e resmungando. Qual era a causa do problema? Eu diria que o primeiro princípio aqui é que sua atitude em relação a si mesmos e ao trabalho estava errada. Eu concordo com aqueles que dizem haver um significado especial na palavra "ajustando" no versículo 2: "E ajustando com os trabalhadores..." Ora, é verdade que a parábola só fala desse ajuste no caso dos primeiros trabalhadores. Lemos adiante: "E saindo perto da hora terceira, viu outros que estavam ociosos na praça, e disse-lhes: ide vós também para a vinha, e dar-vos-ei o que for justo". E disse o mesmo para os demais trabalhadores. Não há referência a um ajuste. Ele simplesmente diz: "Ide para a vinha e dar-vos-ei o que for justo". E eles foram, bem satisfeitos. Mas com as pri­meiras pessoas, que no fim murmuraram a respeito do pagamento, parece haver uma sugestão que eles exigiram um acordo. Pode-se sentir, já no princípio, que havia algo errado na atitude deles. Tinham essa tendência de negociar, fazer certas exigências e esti­pular certas coisas. Quer estejamos certos ou errados em pensar isso a respeito deles, certamente estamos corretos em dizer que eles estavam muito conscientes do seu trabalho, e do que estavam fazendo; enquanto trabalhavam de certa forma examinavam-se a si mesmos. E isso é uma coisa terrível! Mas não seríamos todos culpados disso? Deus sabe que o maior problema que um pregador do evangelho enfrenta é que, enquanto ele está pregando, está constantemente correndo o risco de olhar para si mesmo, e se observar, sempre consciente de si mesmo. Isso entra em todo o nosso serviço, em tudo o que fazemos. Acontece com o homem natural, é claro. Ele está representando o tempo todo e se obser­vando, e isso tende a nos seguir na vida cristã. Esses homens estavam claramente muito conscientes de tudo que fizeram. É óbvio, a julgar por suas palavras, que eles tinham observado a si mesmos o tempo todo.
Vamos passar agora para o ponto seguinte: eles estavam avaliando o seu trabalho. Também estavam avaliando o trabalho dos outros, e registrando cuidadosamente tudo que fizeram e quanto tempo tinham trabalhado, bem como quantas horas eles mesmos haviam trabalhado e quanto haviam feito — "a fadiga e calor do dia". Tinham observado tudo em detalhe e registrado tudo cuidadosamente. E essa é a primeira declaração do Senhor sobre estas pessoas. Vamos pausar aqui por um momento, e per­mitir que isso penetre em nós profundamente. Nosso Senhor está censurando essa atitude. Ela é fatal no reino de Deus. Ele a detec­tou na declaração de Pedro: "Nós tudo deixamos e te seguimos; que receberemos?" A sugestão de barganha e exigência está implí­cita aqui. A atitude fundamental está tão errada, e tão antitética à esfera do Espírito e do reino como veremos; mas aí está, e essa atitude errada certamente acabará causando problemas, como acon­teceu no caso desses homens. O que é tão patético e trágico a respeito disso, é que traz problemas ao homem no exato ponto em que o Senhor é mais bondoso em seus tratamentos. O que torna esta parábola tão terrível é que esses homens demonstraram o que realmente eram, e o terrível espírito que os dominava foi revelado justamente quando o senhor da vinha, em sua benevolência, deu aos últimos exatamente o mesmo que aos primeiros. É aí que esse espírito se revela e causa problemas. Olhem para esses homens. Por causa da sua atitude inicial errada, por terem se esquecido dos princípios da graça, esperavam receber mais do que os outros, pois achavam que mereciam mais. Naturalmente eles eram perfei­tamente lógicos eram muito consistentes consigo mesmos. Partindo dos seus princípios e da sua atitude, seria a conclusão lógica. Por isso digo que começar dessa forma inevitavelmente leva a essa posição. Eles sentiam que tinham o direito a mais e deviam receber mais; esperavam receber mais, e porque não o conseguiram, fica­ram ressentidos.
Então lemos que eles começaram a murmurar. Sua alegria e felicidade se foram completamente, e aqui os encontramos murmu­rando porque não receberam algo extra. Isso não é uma coisa terrível? Mas é um fato que cristãos podem ser culpados dessa atitude que o Senhor retrata aqui — essa tendência de murmurar como fizeram os filhos de Israel no passado, e como esses homens fizeram aqui, sentindo pena de si mesmos, sentindo que não rece­beram tudo que tinham direito, sentindo que de alguma forma receberam tratamento injusto. O Novo Testamento coloca muita ênfase nessa questão. O apóstolo Paulo dirige uma palavra sobre isso aos filipenses. Ele os lembra de que devem "resplandecer como astros no mundo": "Fazei todas as coisas sem murmurações nem contendas; para que sejais irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração corrompida e per­versa, entre a qual resplandeceis como astros no mundo; retendo a palavra da vida" (Filipenses 2:14-16). Que coisa trágica que cristãos possam ser miseráveis e murmuradores, em vez de se regozijar em Cristo Jesus. É um resultado do fato de que se esque­ceram que tudo é pela graça. Eles se esqueceram deste grande princípio que permeia a vida cristã toda, do começo ao fim.
Mas isso não é tudo. Isso nos leva a outra coisa — desprezo por outros, e ao mesmo tempo a um certo grau de inveja. Os homens na parábola dizem: "Estes derradeiros trabalharam só uma hora, e tu os igualaste conosco, que suportamos a fadiga e o calor do dia". É o princípio do irmão mais velho na parábola do filho pródigo, e é ilustrado em muitas outras passagens do Novo Testamento. Essa tendência entra e ataca cristãos que têm sido fiéis em seu testemunho e que têm realizado um excelente trabalho. Vem em formas muito sutis, e os torna miseráveis porque eles sentem que outros receberam uma recompensa maior do que eles. Todos aqueles que leram o relato de Hugh Redwood sobre os anos que passou desviado, vão perceber que esta era exatamente a causa do seu problema. Uma mudança de oficiais no Exército de Salvação levou-o a sentir que já não era o favorito. Outra pessoa foi promovida e colocada em lugar de proeminência, e ele começou a sentir pena de si mesmo, e voltou ao seu pecado. Leiam o seu livro "Deus nas Sombras" e encontrarão ali a história em detalhes. É isso que está ilustrado aqui. Estes homens sentiam um desprezo por outros, tinham inveja daqueles que haviam rece­bido tanto quando tinham feito tão pouco.. Toda a sua atitude era de egoísmo e egocentrismo.
Todavia acima de tudo, e isto é o mais sério e mais terrível de tudo — eles sentiam em seus corações que o senhor da vinha era injusto. Nessa condição eles se convenceram que esse homem não era justo na maneira como os havia tratado. Estavam absolu­tamente errados, não havia qualquer base para tal atitude, mas eles sentiam isso. Assim, o cristão é tentado pelo diabo para sentir que Deus não está sendo justo. O diabo se chega a ele e diz: "Veja só quanto você fez, e o que está recebendo em troca? Olhe só para esse outro, ele não fez nada, e olhe só para o que ele está ganhando". Isso é o que o diabo diz, e essas pessoas lhe dão ouvidos. "Nós suportamos a fadiga e o calor do dia, e estamos recebendo o mesmo que esses outros que só trabalharam uma hora!" Esse é o espírito, e o que torna isso tão sério é que, nessa condição, se o cristão não for cuidadoso, ele logo estará atribuindo injustiça a Deus. Ele vai começar a sentir que Deus não é justo com ele, que Deus não está lhe dando aquilo a que ele tem direito, que ele não está recebendo o que devia receber.
Que coisa miserável, feia e indigna é a natureza humana! Todos somos culpados disso, cada um de nós, de alguma forma ou outra. O diabo vem a nós, e nós lhe damos ouvidos, e come­çamos a duvidar se Deus realmente é justo na maneira que nos trata. O nosso "eu" precisa ser exposto pelo que realmente é. O pecado, em toda a sua feiura e podridão, precisa ser desmasca­rado. Não é de surpreender que nosso Senhor tratou desse espírito errado da forma como o fez nesta parábola. É o maior inimigo das nossas almas, e nos leva à miséria e ao desespero. É este o seu resultado. É completamente errado, e nada pode ser dito em sua defesa.
Isso então me leva à cura. Qual é o tratamento? É entender o princípio controlador do reino de Deus. Esse princípio parece tão óbvio, mas somos tão propensos a esquecer os seus detalhes. O Senhor o apresenta aqui de uma vez por todas. Estou simples­mente colocando o que Ele disse em outras palavras. O princípio é que no reino de Deus tudo é essencialmente diferente de tudo em qualquer outro reino. Na verdade. Ele diz que o reino de Deus não é como aquilo que vocês sempre conheceram, é algo com­pletamente novo e diferente. A primeira coisa que precisamos entender é que "se alguém está em Cristo, nova criatura é (é uma nova criação); as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo". Se tão somente compreendêssemos como devíamos, que estamos numa esfera em que tudo é diferente! Todas as bases são diferentes, não têm nada a ver com os princípios da nossa velha vida. Precisamos examinar isso em detalhe, mas primeiro quero salientar novamente esse novo princípio. Precisamos dizer a nós mesmos, cada dia de nossas vidas: "Agora eu sou um cristão, e porque eu sou um cristão estou no reino de Deus, e todo meu pensamento tem que ser diferente. Tudo aqui é diferente. Não devo trazer comigo essas velhas idéias, essas velhas atitudes, con­ceitos e idéias". Tendemos a confinar a salvação a uma coisa só, ou seja, perdão, mas precisamos aplicar o princípio em toda a nossa vida cristã.
Mantendo isso em mente, então, aqui estão alguns dos deta­lhes. A primeira coisa é esta. Não pensem em termos de direitos e barganhas no reino de Deus. Isso é absolutamente fatal. Não há nada mais errado do que o espírito que argumenta que, por­que eu faço isto, ou porque eu fiz aquilo, tenho o direito de esperar algo em troca. Encontramos isso com muita frequência. Conheço bons cristãos evangélicos que parecem pensar dessa forma. "Agora", dizem, "se oramos por certas coisas, com certeza vamos recebê-las; por exemplo, se oramos toda a noite por reavivamento, teremos um reavivamento". Descrevo isso às vezes como um tipo de cristianismo "ficha-na-máquina". Põe-se a ficha de um lado, e do outro sai o que se quer. Eles demonstram a mesma atitude. Porque homens no passado oraram toda a noite para que um avivamento viesse, e um avivamento veio, então vamos ter uma reunião de oração a noite toda, e o avivamento vai acontecer. Mas isso com certeza nega todo o princípio que o Senhor está ensinando. Não importa o que for, quer seja oração ou qualquer outra coisa, de forma alguma devo argumentar que, porque eu fiz uma certa coisa, tenho o direito de receber algo em troca — nunca. E naturalmente podemos ver que o princípio é verdadeiro na prática. Pensem em quantas reuniões de oração já houve, com esse objetivo. E no entanto, o reavivamento não veio, e eu vou aventurar e dizer que dou graças a Deus que não veio. Que acon­teceria se pudéssemos controlar essas coisas de acordo com nossa vontade? Contudo, não podemos. Vamos nos livrar desse espírito de negociação, que se eu fizer isso, então aquilo vai acontecer. Não podemos ter reavivamento quando quisermos e como resultado de fazer certas coisas. O Espírito Santo é Senhor, e Ele é Senhor soberano. Ele envia essas coisas em Seu próprio tempo e da Sua própria maneira. Em outras palavras, precisamos compreen­der que não temos direito a coisa nenhuma. "Mas", alguém dirá, "Paulo não ensina sobre julgamento e recompensas na Segunda Epístola aos Coríntios, no capítulo cinco?" Certamente, e o faz também no terceiro capítulo da Primeira Epístola aos Coríntios, e o próprio Senhor, no capítulo doze de Lucas, fala sobre aqueles que recebem muitas chicotadas e os que recebem poucas, e assim por diante. O que isso nos diz, então? A resposta é que até mesmo as recompensas são pela graça. Ele não precisa dá-las, e se acham que podem determinar ou predizer com elas devem vir, estão erra­dos. Tudo na vida cristã é pela graça, do começo ao fim. Pensar em termos de barganha, e resmungar por causa dos resultados, revela desconfiança dEle, e precisamos vigiar nosso próprio espí­rito, para que não abriguemos o pensamento de que Ele não está nos tratando de maneira justa.
Se  começarem  assim,  vão  acabar  roubando  a  si  mesmos. Gosto da maneira como o Senhor ensina isso.  Se fizerem um acordo com Deus, bem, então é quase certo que receberão apenas o que foi ajustado, e nada mais. Aqueles homens, bem no prin­cípio, tinham esse ajuste de receber um dinheiro por dia. "Muito bem", disse o senhor da vinha, "receberão um dinheiro." Mas quando os outros vieram, ele lhes disse: "Vão trabalhar, e lhes darei o que é justo". E eles receberam muito mais do que espe­ravam.  Essas últimas pessoas receberam um dinheiro;  mas não esperavam isso, e receberam muito mais do que imaginavam. Mas os primeiros ganharam apenas um dinheiro. Oh, amigos cristãos, não façam barganhas com Deus! Se o fizerem, receberão apenas o que estava no acordo; mas se deixarem tudo nas mãos dEle e de Sua graça, provavelmente receberão mais  do  que poderiam imaginar. O Senhor disse a respeito dos fariseus: "Já receberam sua recompensa". Eles faziam aquelas coisas para serem vistos pelos homens; eles eram vistos pelos homens, isso era o que que­riam, e isso era o que iriam receber, e nada mais.
Vamos então passar para o princípio seguinte. Não mante­nham um balanço ou registro do seu trabalho. Desistam dessa contabilidade. Na vida cristã nada devemos desejar além da Sua glória, nada além de agradar a Ele. Então, não fiquem de olho no relógio, mantenham seus olhos nEle e na Sua obra. Não fiquem registrando seu próprio trabalho, mantenham seus olhos nEle e em Sua glória, em Seu amor e em Sua honra e na expansão do Seu reino. Mantenham sua atenção nisso e em nada mais. Não se preo­cupem com quantas horas dedicou ao trabalho, nem com o que vocês fizeram. Deixem a contabilidade aos cuidados dEle e da Sua graça; deixem que Ele mantenha o registro. Ouçam o que Ele diz a esse respeito: "Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita". É assim que devem trabalhar no Seu reino, devem traba­lhar de tal forma que sua mão esquerda nem saiba o que a direita está fazendo. Por esta razão: "Teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente". Não há necessidade de perder tempo mantendo um balanço: Ele está fazendo isso. E a contabilidade dEle é maravilhosa! Digo isso com reverência, não conheço nada mais romântico do que o método de contabilidade de Deus. Pre­parem-se para surpresas no Seu reino. Vocês jamais saberão o que vai acontecer. Os últimos serão os primeiros. Que inversão total da nossa perspectiva materialista — os últimos, primeiro; os primeiros, por último, tudo de cabeça para baixo. O mundo todo foi virado de cabeça para baixo pela graça. Não é do homem, é de Deus, é o reino de Deus. Que coisa esplêndida!
Quero fazer uma confissão pessoal. Esse tipo de coisa acon­teceu muitas vezes comigo em meu ministério. Às vezes Deus foi gracioso num domingo, e tive consciência de uma extraordinária liberdade, e fui tolo o suficiente para dar ouvidos ao diabo quando ele disse: "Espere só até o próximo domingo, vai ser maravilhoso, a congregação vai ser ainda maior". E então subi ao púlpito no domingo seguinte, e vi uma congregação menor. Mas então, numa outra ocasião, parado naquele mesmo púlpito, batalhei como se estivesse ali sozinho, pregando de forma fraca e ineficaz, e o diabo veio e disse: "Não vai haver ninguém aqui no próximo domingo". Mas, graças a Deus, descobri no domingo seguinte uma congrega­ção maior. Este é o método da contabilidade de Deus. Nunca sabemos. Subo ao púlpito em fraqueza, e termino com poder. Subo com auto-confiança e acabo me sentindo um tolo. É a contabili­dade de Deus. Ele nos conhece muito melhor do que nós conhe­cemos a nós mesmos. E está sempre nos surpreendendo. Nunca se sabe o que Ele vai fazer. Sua contabilidade é a coisa mais romântica que conheço neste mundo.
Nosso Senhor falou disso novamente na terceira parábola do capítulo 25 do Evangelho de Mateus. Lembrem-se da Sua descri­ção das pessoas que vão chegar ao fim do mundo esperando uma recompensa, mas a quem Ele não vai dar nada, e então outros a quem Ele dirá: "Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado". E eles dirão: "Nós nada fizemos; quando Te vimos nu, e faminto, ou sedento, e Te atendemos?" E ele dirá: "Quando os fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes". Que surpresa isso vai ser. Esta vida é cheia de romance. Nosso livro-razão está ultrapassado; ele não tem valor. Estamos no reino de Deus, é a contabilidade de Deus. É tudo pela graça.
Isso então nos traz ao último princípio, qual seja, que não só devemos reconhecer que é tudo pela graça, mas nos regozijar por ser assim. Essa era a tragédia desses homens. Eles viram que aque­les que trabalharam apenas uma hora receberam um dinheiro, e em vez de se regozijarem com aquilo, começaram a murmurar e a reclamar, sentindo que não era justo, que não tinham sido tratados com equidade. O segredo de uma vida cristã feliz é compreender que é tudo pela graça, e regozijar-se nesse fato. "Assim também vós", diz o Senhor numa outra passagem, "quando fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: somos servos inúteis, porque fize­mos somente o que devíamos fazer". Esse é o Seu ponto de vista, esse é o Seu ensino, esse é o segredo de tudo. Não era esse o Seu modo? Era, de acordo com o apóstolo Paulo, que disse: "Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros. De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus". Vocês entendem o que isso significa. Ele não olhou para Si mesmo, Ele não pensou em Si mesmo e nos Seus interesses;  Ele deixou de lado Sua reputação, deixou de lado as insígnias da Sua eterna glória. Ele não considerou Sua igualdade com Deus algo a que devesse se agarrar, dizendo: "Aconteça o que acontecer, não vou largar". Ele não fez isso. Ele o deixou de lado, Ele Se humilhou, esqueceu-Se de Si mesmo, e enfrentou e suportou e fez tudo o que fez olhando somente para a glória de Deus. Nada mais impor­tava para Ele, apenas que o Pai fosse glorificado, e que homens e mulheres viessem ao Pai. Esse é o segredo. Sem olhar para o relógio, sem avaliar a quantidade de trabalho, sem manter um balanço, mas esquecendo tudo exceto a glória de Deus, o privi­légio de ser chamado para trabalhar para Ele, o privilégio de ser um cristão, lembrando somente da graça que olhou para nós e nos removeu das trevas para a luz.
É graça no princípio, é graça no fim. Portanto, quando nós estivermos em nosso leito de morte, o que deve nos consolar e ajudar e fortalecer ali é a mesma coisa que nos ajudou no começo. Não o que fomos, não o que fizemos, mas a graça de Deus em Jesus Cristo nosso Senhor. A vida cristã começa pela graça, deve continuar pela graça, e terminar na graça. Graça, maravilhosa graça. "Pela graça de Deus sou o que sou". "Todavia não eu, mas a graça de Deus, que está comigo".

Martyn Lloyd-Jones

É permitido baixar, copiar, imprimir e distribuir este arquivo, desde que se explicite a autoria do mesmo e preserve o seu conteúdo.

“Todo-Poderoso , aquele que era , que é, e que há de vir.”
“Ora, vem, Senhor Jesus!”

Nenhum comentário: