quinta-feira, 14 de maio de 2009
a) A Transgressão pela Ignorância
Estes versículos contêm a doutrina da Expiação da Culpa, da qual havia duas classes distintas, isto é, transgressões contra Deus e transgressões contra o homem. "Quando alguma pessoa cometer uma transgressão e pecar por ignorância nas coisas sagradas do Senhor, então trará ao Senhor por expiação um carneiro sem mancha do rebanho, conforme à tua estimação em ciclos de prata, segundo o ciclo do santuário, para expiação da culpa". Temos aqui um caso em que foi cometida uma falta positiva nas coisas santas pertencentes ao Senhor; e, embora isto fosse feito "por ignorância", não podia contudo passar em silêncio. Deus pode perdoar toda a espécie de pecado, mas não pode deixar passar um simples jota ou til. A sua graça é perfeita, e pode perdoar tudo. A Sua santidade é perfeita e portanto não pode deixar passar nada. Não pode sancionar a iniqüidade, mas pode apagá-la, e isso também segundo a perfeição da Sua graça e de acordo com as exigências justas da Sua santidade.
É um erro muito grave supor-se que contanto que um homem siga os ditames da sua consciência tem razão em tudo e está seguro. A paz que repousa sobre um tal fundamento será eternamente destruída quando a luz do tribunal de Cristo brilhar sobre a consciência. Deus nunca poderia baixar os Seus direitos a um tal nível. As balanças do santuário são afinadas por uma escala muito diferente daquela que pode proporcionar a consciência mais sensível. Já tivemos ocasião de insistir sobre este ponto, nos comentários sobre a expiação do pecado. Mas nunca é demais insistir sobre este ponto. Duas coisas principais se acham envolvidas nele. A primeira é uma justa percepção do que é realmente a santidade de Deus: a segunda é a compreensão clara do fundamento da paz do crente na presença divina.
Quer se trate do meu estado ou da minha conduta, da minha natureza ou dos meus atos, só Deus pode ser o Juiz daquilo que Lhe convém e daquilo que é próprio da Sua santa presença. A ignorância humana pode apresentar uma alegação quando se trata dos requisitos divinos1?- Não permita Deus! Cometeu-se uma transgressão "nas coisas sagradas do Senhor" sem que a consciência do homem haja tido conhecimento disso. E então"? Nada mais há a fazer"? Os requisitos de Deus podem ser arrumados assim tão facilmente? Decerto que não. Isto seria subversivo de tudo que diz respeito ao parentesco divino.
Os justos são convidados a dar graças em memória da santidade de Deus (Sl 97:12). Como podem eles fazer isto? Porque a sua paz foi conseguida sobre o fundamento pleno da justificação e do estabelecimento perfeito dessa santidade. Por isso, quanto mais elevado for o seu sentimento do que é essa santidade, tanto mais profunda e segura deve ser a sua paz. Eis uma verdade das mais preciosas. O homem não regenerado nunca poderá regozijar-se com a santidade divina. O seu intento será sempre rebaixar essa santidade, se não poder ignorá-la completamente. Um tal homem consolar-se-á com o pensamento de que Deus é bom, que Deus é misericordioso e que Deus é clemente, mas nunca se regozijará com o pensamento de que Deus é santo.
Os seus pensamentos a respeito da bondade de Deus, da Sua graça e misericórdia são profanos. Faria de boa vontade desses atributos benditos uma desculpa para continuar no pecado.
Pelo contrário, o homem regenerado exulta com a santidade de Deus. Vê a sua plena expressão na cruz do Senhor Jesus Cristo. Essa santidade é a mesma que lançou o fundamento da sua paz; e, não somente isto, ele próprio foi feito seu participante e deleita-se nela, aborrecendo o pecado com verdadeiro ódio. Os instintos da natureza divina repugnam-no e aspira à santidade. Seria impossível gozar de verdadeira paz e liberdade de coração se não soubéssemos que todos os requisitos ligados com "as coisas sagradas do Senhor" foram perfeitamente cumpridos pelo nosso divino Sacrifício da Culpa do pecado. Levantar-se-ia sempre ao coração o sentimento penoso de que esses requisitos haviam sido desprezados devido às nossas múltiplas faltas e ofensas. O nosso melhor serviço, os nossos momentos mais santos, os nossos exercícios mais piedosos, podem muito bem representar alguma coisa parecida com transgressão "nas coisas sagradas do Senhor"—"qualquer coisa que não deveria ter sido feita". Quantas vezes não são as nossas horas de serviço público e devoção particular perturbadas e manchadas por distração! Por isso necessitamos da certeza de que todas as nossas transgressões foram divinamente apagadas pelo precioso sangue de Cristo.
Desta forma encontramos no bendito Senhor Jesus Aquele que desceu até à medida das nossas necessidades como pecadores por natureza e transgressores por atos. Encontramos n'Ele a resposta perfeita a todos os anseios de uma consciência culpada e a todas as exigências da infinita santidade a respeito de todos os nossos pecados e todas as nossas transgressões; de modo que o crente pode estar com uma consciência tranqüila e coração libertado na luz plena daquela santidade que é demasiado pura para contemplar a iniqüidade ou ver o pecado.
"Assim, restituirá o que ele tirou das coisas sagradas, e ainda de mais acrescentará o seu quinto, e o dará ao sacerdote; assim o sacerdote, com o carneiro da expiação, fará expiação por ela e ser-lhe-á perdoado o pecado" (versículo 16).
No acréscimo de um quinto, como é estipulado aqui, temos um aspecto do verdadeiro sacrifício da culpa, que é para recear seja pouco apreciada. Quando pensamos em todo o mal e todas as ofensas que temos cometido contra o Senhor, e, mais, quando recordamos quão prejudicado Deus tem sido nos Seus direitos neste mundo iníquo, com que interesse devemos contemplar a obra da cruz como aquilo em que Deus reaveu não só o que havia perdido como é por esse meio beneficiário. Ganhou mais pela redenção do que perdeu pela queda. Recolhe uma mais rica seara de glória, honra e louvor, nos campos da redenção do que jamais poderia ter recolhido com os campos da criação. "Os filhos de Deus" podem entoar um cântico de louvor muito mais magnífico em redor do sepulcro vazio de Jesus do que jamais puderam entoar em vista da obra do Criador. O mal não só foi expiado perfeitamente como se ganhou uma vantagem eterna por meio da obra da cruz. Esta é uma verdade admirável.
Deus tira proveito com a obra do Calvário. Quem poderia ter imaginado isto? Quando contemplamos o homem e a criação, da qual era senhor, jazendo em ruínas aos pés do inimigo, como poderíamos conceber que, do meio dessas ruínas, Deus pudesse recolher despojos mais ricos e nobres do que quaisquer que este mundo pudesse oferecer antes da quedai Bendito seja o nome de Jesus por tudo isto! É a Ele que tudo devemos. E por meio da Sua preciosa cruz que pode anunciar-se uma verdade divina tão assombrosa. Seguramente, essa cruz encerra sabedoria misteriosa. "A qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da glória" (1 Co 2:8). Não é de admirar portanto que em volta dessa cruz e ao redor d'Aquele que foi crucificado nela estivessem sempre entrelaçados os afetos de patriarcas, profetas, apóstolos, mártires e santos. Não é de admirar que o Espírito Santo haja pronunciado esse solene e justo decreto: "Se alguém não ama o Senhor Jesus Cristo, seja anátema; maranata" (1 Co 16:22). O céu e a terra farão eco com um grande e eterno amem a este anátema. Não é de admirar que fosse propósito estável e imutável da mente divina que "ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai" (Fp2:10-11).
b) A Transgressão Contra os Homens
A mesma lei referente a "um quinto" aplica-se ao caso de transgressão contra um homem, pois que lemos: "Quando alguma pessoa pecar e transgredir contra o Senhor (') e negar ao seu próximo o que se lhe deu em guarda, ou o que se depôs na sua mão, ou o roubo ou o que retém violentamente ao seu próximo; ou que achou o perdido, e o negar com falso juramento, ou fizer alguma outra coisa de todas em que o homem costuma pecar, será, pois, que, porquanto pecou e ficou culpada, restituirá o roubo que roubou, ou o retido que retém violentamente, ou o depósito que lhe foi dado em guarda, ou o perdido que achou, ou tudo aquilo sobre que jurou falsamente; e o restituirá no seu cabedal e ainda sobre isso acrescentará o quinto; àquele de quem é o dará no dia de sua expiação" (capítulo 6:2 a 5).
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(1) Existe um princípio precioso ligado com a expressão "contra o Senhor". Embora o caso em questão fosse de dano causado a um próximo, o Senhor vê-o como uma transgressão contra Si. Tudo deve ser encarado em relação com o Senhor. Pouco importa a quem concerne diretamente, Jeová deve ter o primeiro lugar. Assim, quando a consciência de Davi foi traspassada pela frecha da convicção, a respeito do seu procedimento para com Urias, ele exclama, "Pequei contra o Senhor" (2 Sm 12:13). Este princípio não prejudica em nada os direitos do homem ofendido.
Assim como Deus, também o homem ganha com a cruz do Calvário. Contemplando essa cruz, o crente pode dizer: "Pouco importa o muito que tenho sido prejudicado, as faltas que têm sido cometidas contra mim, até que ponto tenho sido enganado e o mal que me tem sido feito, ganho muito mais com a cruz. Não só me foi restituído tudo que havia perdido, mas muito mais".
Assim, quer pensemos no ofendido ou no ofensor, em cada caso somos igualmente surpreendidos com os triunfos gloriosos da redenção e os resultados práticos e poderosos daquele evangelho que enche a alma com a ditosa certeza de que todas as transgressões "são perdoadas" e que a raiz de onde brotaram essas transgressões foi julgada. "O evangelho da glória de Deus bendito" é unicamente o que pode enviar um homem ao meio de uma cena que tem sido testemunha dos seus pecados, suas transgressões e de suas injustiças — pode fazê-lo voltar para j unto daqueles que, de qualquer modo, têm sido as vítimas dos seus maus atos, investido da graça, não apenas para reparar o mal feito, mas, muito mais, para permitir que a onda prática de benevolência inunde todos os seus caminhos; sim, para amar os seus inimigos, fazer bem aos que o odeiam, e orar por aqueles que o maldizem e perseguem.
Tal é a graça preciosa de Deus, que atua em relação com o nosso grande Sacrifício da Expiação da Culpa e tais são os seus ricos e preciosos frutos!
Que resposta vitoriosa a dar àquele realista que podia dizer "Permaneceremos no pecado para que a graça abundei" A graça não somente corta o pecado pela raiz, como transforma o pecador do estado de maldição numa bênção; de uma praga moral numa conduta de misericórdia divina; de um emissário de Satanás num mensageiro de Deus; de um filho das trevas num filho da luz; de um pesquisador de prazeres num ser que renuncia a si próprio e ama a Deus; de um escravo abjecto dos prazeres num servo consagrado de Deus; de um escravo da vil cobiça num servo dedicado de Cristo, de um avarento insensível num benéfico provedor das necessidades dos seus semelhantes.
Desprezemos, pois, as expressões jucosas freqüentemente repetidas: "Não temos nada que fazer? É uma maneira maravilhosamente fácil de se ser salvo". Que todos os que empregam uma tal linguagem considerem aquele que furtava transformado num liberal da dor e fiquem para sempre silenciosos (veja-seEf4:28).Não sabem o que quer dizer o vocábulo graça. Nunca sentiram as suas influências elevadas e santificadoras. Esquecem que, ao passo que o sangue do sacrifício da culpa do pecado purifica a consciência, a lei desse sacrifício manda o culpado àquele a quem tem prejudicado com o principal e o quinto em suas mãos. Nobre testemunho este, tanto para a graça como para a justiça do Deus de Israel! Bela manifestação dos resultados desse maravilhoso plano de redenção pelo qual o prejudicado se torna beneficiário! Se a consciência ficou tranqüila pelo sangue da cruz, quanto aos direitos de Deus, a conduta deve também estar de acordo com a santidade da cruz quanto aos direitos da justiça prática. Estas coisas nunca devem ser separadas. Deus juntou-as, e o homem não deve separá-las. Esta santa união nunca será dissolvida por qualquer coração governado pela pura moral evangélica. Infelizmente, é fácil fazer profissão dos princípios da graça, enquanto que a sua prática e o seu poder são completamente renegados. É fácil falar do descanso do sangue do Sacrifício da Culpa do pecado enquanto que "o principal" e "o quinto" são retidos. Mas isto é vão, e pior do que vão. "Qualquer que não pratica a justiça... não é de Deus" (1 Jo3:10).
Nada pode desonrar tanto a pura graça do evangelho como a suposição que um homem pode pertencer a Deus enquanto que a sua conduta e caráter não mostram os traços formosos da santidade prática. Todas as suas obras são conhecidas de Deus (At 15:18), sem dúvida, porém deu-nos na Sua Santa Palavra as provas pelas quais podemos discernir aqueles que Lhe pertencem. "O fundamento de Deus fica firme, tendo este selo: O Senhor conhece os que são seus e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniqüidade" (2 Tm 2:19). Não temos o direito de imaginar que um malfeitor pertence a Deus. Os santos instintos da natureza divina revoltam-se ante tal suposição. As pessoas têm, por vezes, grande dificuldade em explicar certas obras más por parte daqueles que não podem deixar de considerar como cristãos. A Palavra de Deus resolve o assunto de uma forma tão clara e com tal autoridade que não deixa lugar para tais dificuldades.
"Nisto são manifestos os filhos de Deus e os filhos do diabo. Qualquer que não pratica a justiça e não ama a seu irmão não é de Deus" (1 Jo 3:10). É bom recordar isto nestes dias de relaxamento e condescendência. Existe muita profissão superficial e sem influência contra a qual o cristão verdadeiro é convidado a resistir a dar testemunho severo — um testemunho resultante da contínua exibição dos "frutos de justiça, que são por Jesus Cristo, para glória e louvor de Deus" (Fp 1:11). É deplorável ver como tantos seguem o caminho trilhado— o caminho largo da profissão religiosa sem contudo manifestarem sinais de amor ou de santidade na sua conduta. Leitor crente, sejamos fiéis. Censuremos, por meio de uma vida de renúncia e genuína benevolência, o egoísmo e inatividade culpável de uma profissão evangélica e contudo mundana. Que o Senhor conceda a todo o Seu verdadeiro povo graça abundante para estas coisas!
As Duas Classes de Sacrifícios pela Culpa
Prossigamos agora à comparação das duas classes de sacrifícios de expiação, a saber, o sacrifício da culpa "nas coisas sagradas ao Senhor" e aquele que dizia respeito à transgressão cometida nas relações e transações normais da vida humana. Fazendo-o, depararemos com um ou dois pontos que requerem a nossa reflexão cuidadosa.
Primeiro, notemos que a expressão "Quando alguma pessoa pecar por ignorância" mencionada no primeiro é omitida no último. A razão é óbvia. Os direitos que estão ligados com as coisas sagradas do Senhor devem ultrapassar infinitamente o alcance da mais refinada sensibilidade humana.
Pode haver intervenção contínua nestes direitos —transgressão continuamente sem o transgressor se aperceber do fato. A percepção íntima do homem nunca poderá ser o regulador no santuário de Deus. Isto é uma graça inefável. Somente a santidade de Deus pode determinar o padrão quando os direitos de Deus estão em causa.
Por outro lado, a consciência humana pode compreender facilmente todo o valor de um direito humano e pode tomar conhecimento de qualquer interferência nesse direito. Quantas vezes não teremos nós lesado a Deus nas coisas sagradas sem o havermos notado em nossa consciência — sim, sem ter capacidade para nos apercebermos do fato! (veja-se Ml 3:8). Contudo, isso não acontece quando estão em causa os direitos do homem. A consciência humana pode tomar conhecimento do agravo que o olho humano pode ver e o coração sentir. Um homem, por "ignorância" das leis que regiam o santuário da antigüidade, podia cometer uma transgressão dessas leis sem se aperceber disso até que uma maior luz brilhasse sobre a sua consciência. Porém, um homem não podia "por ignorância" dizer uma mentira, jurar falsamente, cometer um ato de violência, enganar o seu próximo, ou achar um objeto perdido e negá-lo. Todos estes atos eram evidentes e palpáveis e estavam ao alcance da mais apática sensibilidade. É por isso que a expressão "por ignorância" é introduzida a respeito "das coisas sagradas do Senhor" e é omitida quanto aos interesses comuns dos homens. Quão bem-aventurada coisa é saber que o precioso sangue de Cristo resolveu todas as questões, quer seja em relação a Deus, quer seja a respeito do homem — os nossos pecados por ignorância, e os nossos pecados conhecidos! Eis aqui o fundamento profundo e seguro da paz do crente. A cruz respondeu divinamente a TUDO.
Demais quando se tratava de uma transgressão "nas coisas sagradas ao Senhor" o "sacrifício sem mancha" aparece em primeiro lugar de depois o principal e o seu quinto. Esta ordem inverte-se quando é questão de interesses normais da vida (compare-se Lv 5:15-16 com Lv 6:4-7). A razão neste caso é igualmente clara. Quando os direitos divinos eram infringidos o sangue de expiação tornava-se o ponto principal. Ao passo que quando havia interferência nos direitos humanos a restituição ocupava naturalmente o lugar proeminente no espírito. Porém, como este último caso implicava tanto como o primeiro as relações da alma com Deus, o sacrifício é apresentado, embora em último lugar. Se eu ofender o meu semelhante, essa ofensa interpôr-se-á incontestavelmente com a minha comunhão com Deus; e essa comunhão só poderá ser restabelecida sobre o fundamento da expiação. A restituição só não bastaria. Podia satisfazer o ofendido, mas não podia constituir a base do restabelecimento da comunhão com Deus. Eu podia restituir "o principal" e acrescentar-lhe "o quinto" dez mil vezes sem contudo me livrar do meu pecado, porque "sem derramamento de sangue não há remissão" (Hb 9:22). Contudo, se for uma questão de ofensa feita ao meu próximo, então deve haver primeiramente restituição. "Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem, e apresenta a tua oferta" (Mt 5:23- 24) (').
A ordem divina dada para o Sacrifício da Expiação da Culpa tem muito mais importância do que parece à primeira vista. Os deveres que resultam das nossas relações humanas não devem ser descurados. Devem ter o seu próprio lugar no coração. Isto é o que nos ensina claramente o sacrifício da expiação da culpa. Quando um israelita impedia por qualquer ato de transgressão as suas relações com o Senhor, a ordem que devia observar-se era sacrifício e restituição. Quando por um ato de transgressão perturbava as suas relações com o seu próximo, a ordem era restituição e sacrifício.
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(1) Da comparação de Mateus 5:23-24 com Mateus 18:21-22, aprendemos um princípio admirável acerca do modo de resolver agravos e ofensas entre dois irmãos.
O ofensor é obrigado a retroceder do altar para ir arrumar o assunto com aquele a quem ofendeu; pois não pode haver comunhão com o Pai enquanto um irmão tem "alguma coisa contra mim". Mas, então, note-se a bela maneira em que o ofendido é ensinado para receber o ofensor. "Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim e eu lhe perdoarei?- Até sete?- Jesus lhe disse: Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete". Tal é o método divino de arrumar todas as questões entre irmãos. "Suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos, uns aos outros, se algum tiver queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós também" (Cl 3:13).
Quem ousará dizer que isto é uma distinção sem importância? A inversão da lei não dá a sua própria lição, que por ser divina, é essencial? Sem dúvida. Cada ponto é abundante em significado, se permitirmos que o Espírito Santo o transmita aos nossos corações e não pretendermos tirar o sentido por meio do auxílio da nossa pobre e vã fantasia. Cada sacrifício apresenta o seu próprio aspecto característico do Senhor Jesus e da Sua obra; e cada um destes aspectos é apresentado por sua própria ordem característica; e podemos dizer afoitamente que é ao mesmo tempo dever e satisfação de um crente espiritual compreender tanto um como outro destes característicos. O próprio caráter da mente que se desinteressasse pela ordem peculiar de cada sacrifício punha de lado também a idéia de uma fase peculiar de Cristo em cada um. Negaria deste modo a existência de qualquer diferença entre o holocausto e a oferta de expiação do pecado; e entre a expiação do pecado e a expiação da culpa; e entre qualquer destes e a oferta pacífica ou a oferta de manjares.
Demais, concluir-se-ia que os sete primeiros capítulos do Livro de Levítico não eram mais que uma vã repetição, repetindo cada capítulo sucessivamente a mesma coisa. Quem poderia ceder a qualquer coisa tão monstruosa como isto? Qual o espírito cristão que poderia aceitar um tal insulto às páginas sagradas? Um racionalista ou um neólogo podem expor idéias tão frívolas e detestáveis; mas aqueles que têm sido divinamente ensinados que "toda a Escritura é divinamente inspirada" serão levados a considerar os diversos símbolos na sua ordem específica como outros tantos cofres nos quais o Espírito Santo tem entesourado "as riquezas incompreensíveis de Cristo" para o povo de Deus. Não existe nenhuma repetição fastidiosa nem nenhuma redundância. Tudo é de uma variedade divina, rica e celestial e tudo quanto precisamos é de estar pessoalmente familiarizados com o grande Antítipo para compreendermos as belezas e nos apoderarmos dos toques delicados de cada figura. Desde o momento que o coração pode compreender que é Cristo que temos em cada figura, pode deter-se com interesse espiritual sobre os pormenores mais minuciosos. Vê significado e beleza em tudo — encontra Cristo em todas. Assim como no reino da natureza, o telescópio e o microscópio apresentam à vista as suas próprias maravilhas, do mesmo modo acontece com a Palavra de Deus. Quer a consideremos como um todo, ou examinemos cada cláusula, encontramos aquilo que provoca o louvor e ação de graças dos nossos corações.
Prezado leitor, que o nome do Senhor Jesus seja sempre mais precioso dos nossos corações! Então daremos valor a tudo que fala d'Ele — tudo que O representa — tudo o que lança nova claridade sobre a sua excelência singular e incomparável beleza!
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NOTA: Os versículos finais do capítulo VI juntamente com todo o capítulo VII tratam da lei dos vários sacrifícios a que já nos referimos. Existem, todavia, alguns pontos na lei da Expiação do Pecado e da Expiação da Culpa que merecem a nossa atenção antes de deixarmos esta importante parte do nosso livro.
A santidade pessoal de Cristo não é apresentada em nenhum dos sacrifícios de um modo tão notável como na Expiação do Pecado. "Fala a Arão e a seus filhos, dizendo: Esta é a lei da expiação do pecado: no lugar onde se degola o holocausto se degolará a expiação do pecado perante o Senhor; coisa santíssima é... Tudo o que tocar a sua carne será santo... Todo varão entre os sacerdotes a comerá; coisa santíssima é" (Lv 6:25-29). Assim também falando na oferta de manjares, coisa santíssima é, como santos são a oferta da expiação da culpa e a expiação do pecado. Isto é notável e surpreendente. O Espírito Santo não tinha necessidade de guardar com tanto zelo a santidade de Cristo no holocausto; mas a fim de que a alma não perdesse de vista esta santidade, ao contemplar o lugar que o bendito Senhor tomou na oferta da expiação do pecado, somos repetidas vezes alertados do fato pelas palavras "coisa santíssima é". E verdadeiramente edificante e consolador ver a santidade essencial e divina da pessoa de Cristo brilhar com intensa claridade no meio da escuridão terrível do Calvário. A mesma idéia é observável na "lei da expiação da culpa" (veja-se Lv 7:1-6). Nunca a expressão "o Santo de Deus", a respeito do Senhor, foi tão clara como quando Ele "foi feito pecado" na cruz de maldição. A vileza e negrura daquilo com que Ele se identificou na cruz serviu apenas para ressaltar claramente que Ele era "santíssimo". Embora tivesse tomado sobre Si o pecado. Ele era isento de pecado. Embora sofrendo a ira de Deus, era as delícias do Pai. Embora privado da luz do semblante de Deus. Ele habitava no seio do Pai. Que precioso mistério! Quem poderá sondar a sua profundidade? Como é maravilhoso encontrarmos o seu símbolo de um modo notável na "lei da expiação do pecado".
Demais, o leitor deveria procurar compreender o significado da expressão "Todo o varão entre os sacerdotes a comerá". O ato cerimonial de comer a oferta da expiação do pecado ou da expiação da expiação da culpa era expressivo de completa identificação. Porém, para comer a expiação do pecado — fazer dos pecados de outrem os seus próprios — requeria um maior grau de energia sacerdotal, como é expresso nos varões "entre os sacerdotes". "Disse mais o Senhor a Arão: E eu, eis que tenho dado a guarda das minhas ofertas alçadas, com todas as coisas santas dos filhos de Israel; por causa da unção as tenho dado a ti e a teus filhos por estatuto perpétuo. Isto terás das coisas santíssimas do fogo: todas as suas ofertas, com todas as suas ofertas de manjares e com todas as suas expiações do pecado, e com todas as suas expiações da culpa, que me restituírem, serão coisas santíssimas para ti e para teus filhos. No lugar santíssimo o comerás; todo o varão o comerá; santidade será para ti. Também isto será teu: a oferta alçada dos seus dons com todas as ofertas movidas dos filhos de Israel; a ti, a teus filhos, e a tuas filhas contigo, as tenho dado por estatuto perpétuo; todo o que estiver limpo na tua casa as comerá" (Nm 18:8-11).
Era necessária uma maior energia sacerdotal, para se comer da oferta da expiação do pecado ou da expiação da culpa do que para participar simplesmente das ofertas movidas e da oferta alçada com seus dons. As "filhas" de Arão podiam comer das últimas. Ninguém senão os filhos de Arão podia comer das primeiras. Em geral, a frase "o varão" exprime alguma coisa em relação com a idéia divina: a palavra "fêmea" com o desenvolvimento humano. A primeira frase apresenta alguma coisa em força, a segunda mostra a sua imperfeição. Como são tão poucos entre nós os que têm energia sacerdotal suficiente para os tornar capazes de fazerem seus os pecados e culpas de outrem! O bendito Senhor Jesus fez isto perfeitamente. Aproximou-Se dos pecados do Seu povo e sofreu a pena deles na cruz. Identificou-Se inteiramente conosco de forma que podemos saber, com plena e ditosa certeza, que toda a questão de pecado e culpa foi divinamente resolvida. Se a identificação de Cristo foi perfeita, então a liquidação foi igualmente perfeita; e que foi perfeita declara-o a cena passada no Calvário. Tudo está cumprido. O pecado, as transgressões, as exigências de Deus; as exigências do homem, tudo foi eternamente liquidado; e, agora, paz perfeita é a parte de todos aqueles que aceitam, pela graça, como verdadeiro o testemunho de Deus. Isto é tão simples quanto Deus o pode fazer, e a alma que o crê é feliz. A paz e felicidade do crente dependem inteiramente da perfeição do sacrifício de Cristo. Não é uma questão do seu modo de o receber ou dos seus pensamentos ou sentimentos a respeito dele. É simplesmente uma questão de dar crédito, pela fé, ao testemunho de Deus quanto ao valor do sacrifício. O Senhor seja louvado pelo Seu próprio meio simples e perfeito de paz! Que muitas almas atribuladas sejam induzidas pelo Espírito Santo a compreendê-lo!
Terminaremos aqui as nossas considerações sobre uma das mais ricas passagens de todo o cânone de inspiração. É muito pouco o que temos podido coligir dela. Temos apenas penetrado abaixo da superfície de uma mina inesgotável. Se temos contudo conseguido que o leitor se sentisse inclinado, pela primeira vez, a considerar as ofertas como outras tantas representações variadas do grande Sacrifício, e se ele se sentiu impulsionado a rojar-se aos pés do grande Mestre para aprender mais das profundidades vivas destas coisas, não posso deixar de pensar que foi alcançado um fim pelo qual, devo sentir-me profundamente grato.
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